Justiça eleitoral contramajoritária e soberania popular: a democrática vontade das urnas e a autocrática vontade judicial que a nulifica

AuthorRuy Samuel Espíndola
ProfessionProfessor de Direito Constitucional da Escola Superior de Magistratura de Santa Catarina e Professor de Direito Eleitoral da ESA/OAB/SC
Pages87-105
Justiça eleitoral contramajoritária e soberania popular:
a democrática vontade das urnas e a autocrática
vontade judicial que a nulifica
Ruy Samuel ESPÍNDOLA138
O presente ensaio objetiva refletir, em termos críticos, sobre o crescente avanço da
jurisdição eleitoral sobre a vontade das urnas e sobre os direitos políticos de votar e ser
votado. Avanço ampliado, especialmente, pela legislação eleitoral dos últimos anos (da
lei ordinária 9.840/99, que instituiu o 41-A à lei complementar n. 135/210, “ficha
limpa”). Sobretudo, objetiva refletir sobre o papel contramajoritário da Justiça eleitoral
ao invalidar o resultado de eleições de candidatos eleitos ou mandatários empossados,
tendo em conta decisões que cassam ou indeferem registros, diplomas ou mandatos.
Ao procurar tutelar as liberdades de votar e a liberdade de postular votos para
ocupação e exercício de mandatos populares, a justiça eleitoral deve sempre proteger,
igualmente, os direitos políticos fundamentais dos cidadãos: (i) cidadãos alistados para
votar e (ii) cidadãos filiados partidariamente, que, aprovados em convenções partidárias,
resolvem pedir ao Judiciário eleitoral que lhes defira o direito de disputarem mandato
político para os cargos eletivos existentes na República.
Para votar, lembremos, é necessário o preenchimento das condições de alistabilidade
(artigos 4º e 5º do Código Eleitoral139 e 14, § 1º140 Constituição Federal). Para receber
votos, para pedir candidatura, é necessário demonstrar as condições de elegibilidade e
não apresentar causas de incompatibilidades ou inelegibilidades. Essas últimas são
causas impeditivas de candidaturas, e podem ser contemporâneas ou posteriores ao
pedido de registro (artigo 3º141 do CE e 14, § 3º142 CF).
138 Professor de Direito Constitucional da Escola Superior de Magistratura de Santa Catarina e
Professor de Direito Eleitoral da ESA/OAB/SC – Mestre em Direito Público pela UFSC – Autor do
livro “Conceito de Princípios Constitucionais”,– Conferencista Internacional – Secretário de Comissão
Especial do Conselho Federal da OAB - Sócio gerente da Espíndola & Valgas, Advogados Associados,
com sede em Florianópolis/SC – Advogado militante perante o TSE e STF (Brasil).
139 “Art. 4º São eleitores os brasileiros maiores de 18 anos que se alistarem na forma da lei. (norma
alterada pelo art. 14 da Constituição Federal)
Art. 5º Não podem alistar-se eleitores: I - os analfabetos; (norma alterada pelo art. 14, § 1º, II, "a",
da Constituição/88) II - os que no saibam exprimir-se na língua nacional; III - os que estejam privados,
temporária ou definitivamente dos direitos políticos. Parágrafo único - Os militares são alistáveis, desde
que oficiais, aspirantes a oficiais, guardas-marinha, subtenentes ou suboficiais, sargentos ou alunos das
escolas militares de ensino superior para formação de oficiais.”
140 “§ 1º - O alistamento eleitoral e o voto são: I - obrigatórios para os maiores de dezoito anos; II -
facultativos para: a) os analfabetos; b) os maiores de setenta anos; c) os maiores de dezesseis e menores
de dezoito anos.”
141 “Art. 3º Qualquer cidadão pode pretender investidura em cargo eletivo, respeitadas as condições
constitucionais e legais de elegibilidade e incompatibilidade.”
142 “§ 3º - São condições de elegibilidade, na forma da lei: I - a nacionalidade brasileira; II - o pleno
exercício dos direitos políticos; III - o alistamento eleitoral; IV - o domicílio eleitoral na circunscrição;
V - a filiação partidária; VI - a idade mínima de: a) trinta e cinco anos para Presidente e Vice-Presidente
da República e Senador; b) trinta anos para Governador e Vice-Governador de Estado e do Distrito
Federal; c) vinte e um anos para Deputado Federal, Deputado Estadual ou Distrital, Prefeito, Vice-
Prefeito e juiz de paz; d) dezoito anos para Vereador.”
Estudios jurídicos de aproximación del Derecho latinoamericano y europeo
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Para o exercício da soberania popular -princípio estruturante do sistema
constitucional vigente- a junção dessas duas liberdades é fundamental. Ou seja, a junção
dos direitos de votar e o de ser votado. Mesmo o Código Eleitoral, produzido em plena
ditadura militar, em 15.07.65, parece ter percebido a riqueza desses dois direitos
políticos em seu artigo primeiro: “Este Código contém normas destinadas a assegurar a
organização e o exercício de direitos políticos, precipuamente os de votar e ser votado.”
A soberania popular se exterioriza pelo voto direto, secreto, universal e periódico143,
manifestado nas urnas - hoje urnas eletrônicas. A vontade dos cidadãos representados,
elegendo seus representantes políticos -os candidatos- é momento instituinte de
mandatos, de investidura de cargos eletivos144, e de eleição de planos de governo e
propostas partidárias (ao menos em tese, assim o faz o eleitor, na urna). Momento que
se aproxima do momento constituinte, mas não o supera em relevância jurídica e
política; do momento supremo de feitura de nova Constituição.
Vontade constituinte e vontade instituinte nas urnas são “vontades base”, “vontades
chaves”, que se realizam em momentos inaugurais para o Direito, no caso da vontade
constituinte; e reiniciais para a continuidade da política representativa, no caso da
vontade das urnas, sendo esta periodicamente renovável.
Se a primeira, a vontade constituinte, é momento que objetiva perenidade e
permanência diretiva; a vontade das urnas é extensão e renovação da primeira; a
vontade das urnas é assegurada e limitada pela vontade constituinte. A vontade das
urnas, assim, é vontade fruto de um poder constituído, o povo (que também é o titular
do poder constituinte), do corpo de eleitores e do corpo de candidatos. Todavia, ambas,
são vontades chaves de uma democracia constitucional145: vontade constituinte -
fundante e inaugural-, e vontade das urnas - renovadora e continuadora da obra feita
pelo poder constituinte.
Essa vontade renovadora, instituída pelas urnas, realiza a vontade direta dos
eleitores, ao manifestarem decisão sobre quem eles querem que lhes represente na
feitura de leis e demais atos de estado comportados nas funções executivas e legislativas
pertinentes. Lembrando que entre nós, os juízes não são eleitos por sufrágio popular146.
São vontades eleitorais, “vontades das urnas”, as manifestadas nas diferentes
unidades da federação, para realizar o autogoverno dessas pessoas políticas federadas:
na União, para prover os mandatos de Presidente, Vice-Presidente, Senadores e
Deputados Federais; nos Estados-Membros, para mandatos de Deputados Estaduais e
Governadores e Vice-Governadores; nos Municípios, para a representação política de
Prefeito, Vice-Prefeito e Vereadores.
143 Afirma a Constituição da República, em seu artigo 14: “A soberania popular será exercida pelo
sufrágio universal e pelo voto direto e secreto, com valor igual para todos (...)”.
144 Prescreve o Código Eleitoral em seu art. 2º: “Todo poder emana do povo e será exercido em seu
nome, por mandatários escolhidos, direta e secretamente, dentre candidatos indicados por partidos
políticos nacionais, ressalvada a eleição indireta nos casos previstos na Constituição e leis específicas.”
145 Sobre nossa concepção de democracia constitucional, ver nosso artigo: A Constituição como
Garantia da Democracia: o papel dos Princípios Constitucionais. Revista de Direito Constitucional e
Internacional. Cadernos de Direito Constitucional e Ciência Política. São Paulo: Revista dos
Tribunais/Instituto Brasileiro de Direito Constitucional, ano 11, abr./jun. 2003, n. 44, p 75/86. E sobre
democracia representativa em contraponto a democracia participativa, ver também nosso artigo
Democracia Participativa: auto-convocação de referendos e plebiscitos pela população. Estudos
Eleitorais, Brasília, TSE, v. 5, n. 2, mai/ago 2010, p. 65/87.
146 Conforme a CF, artigo 93, inciso I: “ingresso na carreira, cujo cargo inicial será o de juiz
substituto, mediante concurso público de provas e títulos (...).”

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