A prescrição constitutiva: consectário da posse, aquisição de direito fundamental e contributo para afirmação da cidadania

AuthorSérvio Túlio Santos Vieira
Pages254-286
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A PRESCRIÇÃO CONSTITUTIVA:
consectário da posse, aquisição de direito fundamental e
contributo para a afirmação da cidadania
Sérvio Túlio Santos Vieira
INTRODUÇÃO
O exercício da posse por um indivíduo sobre a propriedade de outro,
durante certo lapso de tempo, preenchidos os requisitos estabelecidos em lei, sem
que o proprietário assuma comportamento positivo para afastar o possuidor do
uso e fruição do seu imóvel, produz efeitos jurídicos: a aquisição do domínio por
este e sua perda por aquele. É o fato jurídico em sentido amplo em que,
concomitantemente, se adquire, se modifica e se extingue os direitos de posse e
de propriedade. Quando isto ocorre identifica-se a prescrição constitutiva,
vulgarmente conhecida como usucapião, que transforma o direito subjetivo real
provisório do possuidor em direito subjetivo real definitivo. Titular da
propriedade, exercendo dali para frente direito fundamental, assim reconhecido
pela Constituição Federal, quem era possuidor passa a ostentar o status de
proprietário, vinculando-se às questões de direito público, sendo a ele outorgadas
por lei faculdades com roupagem de direitos privados, que não lhe eram
assegurados no tempo em que exercia posse, ainda que ad usucapionem. Com isso,
há um incremento da sua cidadania ativa que vai, e. g., desde a possibilidade de
promover incorporação imobiliária ou dividir o seu terreno, por meio de
loteamento ou desmembramento, à participação e deliberação com o status de
proprietário na elaboração do plano diretor e de gestão democrática do seu
município, vislumbrando-se aí que a prescrição constitutiva, como efeito da
posse, proporciona a aquisição do domínio, direito fundamental, contribuindo
para a afirmação da cidadania.
1. A RELEVÂNCIA DO TEMPO NAS RELAÇÕES JURÍDICAS E SUA
INFLUÊNCIA NA AQUISIÇÃO E PERDA DE DIREITOS
O direito romano não reconhecia a prescrição como fato jurídico de
aquisição ou de extinção de direito. Para a doutrina romana a prescrição tal
como ainda se entende estava amalgamada ao direito de propor ação, causa de
extinção advinda do seu não exercício no prazo estabelecido em lei. Com o
estudo que levou à classificação das ações quanto ao prazo para o seu exercício,
o direito romano passou a dividi-las em dois grupos: as ações perpétuas (perpetuae)
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e as ações temporárias (temporariae). As ações, em regra, eram imprescritíveis. A
prescrição em Roma só se verificava em raros casos, tendo em vista a longevidade
do prazo para o exercício das ações.
Consoante Alves (2010, p. 247) "no sistema das ações da lei não havia
prazo para que se intentasse uma ação: todas eram perpétuas". No fim do período
clássico, já se admitia a arguição de exceptio ou praescriptio longi temporis pelo réu,
nas ações reais, se "tivesse possuído a coisa por 10 anos, entre presentes ou 20,
entre ausentes, com base em relação jurídica que pudesse justificar a aquisição do
direito". (ALVES, 2010, p. 247) De acordo com Chamoun (1968, p. 117) essa
classificação surgiu no Baixo Império. As ações perpétuas (actiones perpetuae)
prescreviam em 30 ou 40 anos, ou, contra a Igreja, em 100 anos. E acrescenta:
"as ações temporárias (actiones temporales) prescrevem geralmente em um ano. Essa
distinção data de uma constituição de Teodósio II, de 424, a qual introduziu no
direito romano o instituto da prescrição extintiva, de origem helênica".
A prescrição trintenária, isto é, a praescriptio longissimi temporis também foi
adotada pelo direito romano. Por essa espécie de prescrição extinguiam-se todas
as ações reais e pessoais. Há notícia de que a prescrição longíssima ou de longo
tempo restou perfilhada após o reconhecimento da praescriptio longi temporis, vale
dizer, uma espécie de prescrição com prazo reduzido que extinguia a ação, não
mais em trinta anos, e sim em dez ou em vinte anos, de conformidade com o
direito justinianeo.
A praescriptio longissimi temporis passou a ser admitida como espécie de
prescrição aquisitiva no período pós-clássico, por Constantino com inversão das
mesmas palavras: longissimi temporis praescriptio, espécie de usucapião, consolidada
como prescrição constitutiva não assim denominada no direito justinianeo.
Alves (2010, p. 327) anota que "Justiniano, finalmente, introduziu nessa matéria
várias inovações. A princípio em 529 d.C., deu eficácia aquisitiva à longi temporis
praescriptio. Depois, em 531 d.C., fundiu esse instituto com a usucapio". Ratificando
esse entendimento, registra Monteiro (2003, p. 333):
Foi Justiniano quem refundiu completamente o instituto, destacando sua
dupla face, aquisitiva e extintiva, sendo a primeira modo de adquirir a
propriedade pela posse prolongada, e a segunda, meio pelo qual alguém se
libera de uma obrigação pelo decurso do tempo.
No direito de Justiniano houve o reconhecimento da prescrição aquisitiva
como modo de convolar a posse em propriedade. No tocante à prescrição
extintiva, vinculava-se o fato extintivo à perda do direito de ação. Decorrido o
prazo para o seu exercício tornava-se impossível obter o cumprimento do dever
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jurídico. O titular não dispunha de qualquer meio extrajudicial para exercer o
direito e ver cumprido o dever jurídico.
A edição do Código de Napoleão em 1804, logo após a Grande Revolução
de 1789, mesmo com a consagração das duas espécies de prescrição, manteve a
vinculação da prescrição ao exercício do direito de ação. A vetusta redação do
considerado ancien article 2262 du Code Napoléonien, dispunha: "Toutes les actions, tant
réelles que personelles, sont prescrites par trente ans, sans que celui qui allègue cette prescription
soi obligé d'en rapporter un titre, ou qu'on puisse lui opposer l'exception déduite de la mauvaise
foi". Com a promulgação de la Loi 2008-561, du 17 juin 2008, na Era
contemporânea, dá-se o abandono da vinculação do fato extintivo à propositura
da ação e da prescrição longissima temporis (trintenária).
O sobredito preceptivo legal é substituído pelo art. 2219, com a
proclamação da autonomia do fato extintivo, sem vinculá-lo ao direito de ação.
Ele afasta o decurso do prazo de trinta anos para decretar a consumação da
prescrição, admitindo que por meio deste fato jurídico se adquire ou se liberta do
direito, em decorrência de um certo lapso de tempo e sob as condições
determinadas em lei.
As relações jurídicas não podem se eternizar. Como todas as relações,
ainda que estabilizadas e duradouras, vergam-se ao transcurso do tempo,
submetendo-se ao termo certo, dies certus quando, ou ao termo incerto, dies incertus
quando. Todos os direitos subjetivos e a maior parte dos direitos potestativos
malgrado nos primeiros esteja presente o dever jurídico a ser cumprido e nos
derradeiros não devem se sujeitar a um prazo razoável para o seu exercício, sob
pena de perpetuação da sua duração. Se assim não fosse teriam existência mais
duradoura que a dos sujeitos dessas relações.
Para que o exercício dos direitos não se eternize, a lei estabelece prazo para
o titular assumir comportamento positivo, com a ressalva do exercício dos
direitos puramente potestativos impropriamente chamados de imprescritíveis
consagrando que ele tem o ônus de agir comissivamente para protegê-los.
Quando deixa de fazê-lo, o decurso do tempo se encarrega de transferir o direito
para o patrimônio de outrem ou de extingui-lo, impedindo que o seu titular jamais
possa exercê-lo, seja por que via for.
Enquanto não ocorre o implemento do termo resolutivo ou final para que
exija o cumprimento do dever jurídico, o titular do direito subjetivo há que
assumir conduta comissiva dentro do prazo estabelecido em lei. Deve entregar-
se ao facere no tempo designado pela norma legal que trata do seu direito
subjetivo. Se não o faz, repita-se, assiste sua aquisição por aquele que tinha o

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