O fim do sem-fim: o aprofundamento da precarização social do trabalho e os impactos à cidadania no Brasil

AuthorCarla Appollinario de Castro; Luiz Antonio da Silva Peixoto
Pages82-115
82
O FIM DO SEM-FIM: o aprodunfamento da precarização social
do trabalho e os impactos à cidadania no Brasil
Carla Appollinário de Castro
Luiz Antonio da Silva Peixoto
1. REATANDO UM NÓ PERDIDO: a precarização do trabalho como
um processo social
O filme homônimo que dá o título principal ao presente artigo, lançado
no limiar do milênio, apresenta trajetórias e narrativas de trabalhadores de dez
estados brasileiros cujas profissões e ofícios, apresentados sob a forma de
documentário, nos desafiavam a, além de conhecer histórias de resistências diante
de irreversíveis transformações tecnológicas e culturais, a refletir sobre o futuro
do trabalho no Brasil e no mundo. Sem perder de vista o tom bucólico presente
em todo e qualquer processo de fim das coisas, o maior desafio posto naquele
momento era o esforço de compreensão sobre o impacto das evoluções
contemporâneas com repercussão direta sobre o trabalho e sobre os processos
de subjetivação dos trabalhadores.
Passados vinte anos desde então, atropelados ainda por uma crise sanitária
de escala global que se implantou em um contexto já marcado por uma crise
econômica (desde 2014) e pelo ascenso da desproteção social do trabalho (após
a reforma trabalhista de 2017) as trabalhadoras e os trabalhadores brasileiros
experimentam, em choque, um processo de profundo acirramento da
precarização social do trabalho, de acordo com a categoria analítica desenvolvida
por Graça Druck (2013), aqui, tomada como referência para orientar as nossas
discussões.
A precarização social do trabalho diz respeito ao “processo econômico,
social e político que se tornou hegemônico e central na atual dinâmica do novo
padrão de desenvolvimento capitalista a acumulação flexível no contexto de
mundialização do capital e das políticas de cunho neoliberal” (DRUCK, 2013, p.
373).
A partir desse processo, tem-se a emergência de um novo desenho de
trabalho, curiosamente concebido na contemporaneidade pelos desfiliados como
“job” e um novo modo de vida pautado no casamento perfeito da flexibilização
83
das estruturas produtivas com a flexibilização das estruturas salariais, ao mesmo
tempo, em que se impõe o desmantelamento inaudito da proteção social.
Trata-se de estratégia de dominação do capital sobre o trabalho,
amplamente utilizada, desde os primórdios da exploração capitalista, mas que, no
atual estágio de desenvolvimento das forças produtivas, tendo em vista as
conquistas históricas da classe trabalhadora brasileira, agora, convertidas
relíquias, isto é, em vestígios de memória do que já foi a proteção social um dia,
resulta em um processo mais amplo de radicalização e aprofundamento das
consequências da precarização social do trabalho.
A palavra “trabalho”, como reflexo de distintos processos históricos,
apresentou vários sentidos e significados. A partir do desenvolvimento das
relações produtivas capitalistas, mais especificamente na modernidade, a
expressão passou a ser utilizada muito mais no sentido de emprego regular e
pago, sendo, por isso, associada ao trabalho assalariado, base constitutiva da
cidadania a partir da sociedade salarial. Entretanto, nem sempre foi assim, como
mostra Raymond Williams, ao descrever os vários processos de representação,
pelos quais se desenvolveu a evolução histórica dos diversos sentidos do
trabalho:
Há uma interessante relação entre trabalho [work] e LABOUR. Este
último t inha forte sentido medieval de dor e faina [toil]; anteriormente,
trabalho [work] também fazia referência, entre alguns de seus sentidos, ao
de faina. O próprio t ermo toil derivou de uma p.r. latina que significa
mexer e esmagar, e surgiu primeiramente como sinônimo de transtorno e
tumulto antes de adquirir o sentido de trabalho árduo, no S14. Labour e toil
são palavras ainda mais duras que work, mas no S13 os trabalhadores
manuais receberam a designação de labourers [trabalhad ores, operários], e
a oferta desse tipo de trabalho generalizou-se como mão-de-obra [labour]
desde o S17. Trabalho adquiriu então um sentido mais geral de atividade.
(...) A especialização de trabalho como emprego remunerado é o
resultado do desenvolvimento das relações produtivas capitalistas. Estar
empregado [to be in work] ou desemprego [to be out of work] era
estabelecer uma relação definida c om a pessoa que controlava os meios
do esforço produtivo. Então, trabalho deslocou-se, em parte, do próprio
esforço produtivo para a relação social predominante. (...) O
desenvolvimento de emprego [job] talvez seja ainda mais significativo. Suas
origens são obscuras, mas sempre foi uma palavra predominantemente
coloquial. usos como lump [massa uniforme, mont e, grande
quantidade] ou piece [pedaço, parte, bocado] desde o S14 e como cartload
[carroçada] desde o S16. Em 1557, temos “certas quantidades de trabalho”
[certen jobbes of woorke]. O sentido de uma quantidade de trabalho surgiu
com vigor no S17 e jobbing [trabalho de empreitada] e jobber [trabalhador
de empreitada], em sentidos ainda vigentes, passaram a significar a
84
execução de pequenos trabalhos ocasionais. (...) Contudo, apesar de todos
esses sentidos, job também surgiu como o termo hoje p rimeiro e
praticamente universal para referir-se ao emprego normal (WILLIAMS,
2007, p. 396-399).
Pela trajetória histórico-social da expressão trabalho (acima descrita), é
possível perceber o quanto o processo de desenvolvimento das relações
produtivas capitalistas provocou o distanciamento da atividade de autoprodução
humana do seu verdadeiro sentido (considerado como o aspecto/sentido
positivo do trabalho1) e, mais, o quanto neste processo, o trabalho foi se
configurando apenas como um mero instrumento de controle e dominação a
serviço da exploração do homem pelo homem (que podemos considerar como
o aspecto/sentido negativo do trabalho2). Daí a importância de compreendermos
este processo, a fim de analisá-lo, em seguida, já no contexto de acirramento da
precarização social do trabalho, em que se verifica que, muito mais do que uma
agenda estritamente econômica, o novo cenário parece revelar que a exploração
capitalista pelo trabalho se concretizou, com todo o vapor, o seu objetivo
máximo, consistente na exploração sem ou quase sem limites normativos ou
sociais.
Uma perfeita caracterização do atual cenário, pós crise econômica, pós-
reforma da legislação de proteção ao trabalho e pós pandemia da COVID-193, é
apresentada por Graça Druck, em entrevista realizada Viviane Tavares -
EPSJV/Fiocruz:
A pandemia desnudou e a profundou a precarização do trabalho já
existente no Brasil em todas as suas dimensões: nos indicadores do
mercado de trabalho, com as altas taxas de desemprego, o alto nível de
informalidade, a crescente taxa de subutilização da força de trabalho e os
baixos rendimentos; no âmbito do processo de trabalho, as longas
jornadas, a intensificação do trabalho, o desrespeito às normas de saúde e
segurança do trabalhador, o assédio moral; no campo da saúde do
trabalhador, os altos índices de acidentes e adoecimento; e no âmbito do
direito do trabalho, uma nova legislação que desobriga as empresas e o
Estado com a proteção do trabalhador, dificulta o acesso à Justiça do
Trabalho e retira poder dos sindicatos (TAVARES, 08/10/2020).
1 Para um aprofundamento, remetemos para MARX; ENGELS, 2007.
2 Para a crítica ao trabalho e a compreensão do seu sentido negativo, recomendamos: MARX, 2008;
MARX, 2004; MARX, 1967.
3 A pandemia foi reconhecida no Brasil, a partir de 20/03/2020, pelo Decreto Legislativo nº 6, de
20 de março de 2020 (BRASILd, 2020).

To continue reading

Request your trial

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT