Ética discursiva e argumentação religiosa: tensões para o modelo democrático e para a prática cidadã

AuthorRubens de Lyra Pereira
Pages141-169
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ÉTICA DISCURSIVA E ARGUMENTAÇÃO RELIGIOSA:
tensões para o modelo democrático e para a prática cidadã
Rubens de Lyra Pereira
INTRODUÇÃO
Um voto favorável em nome de Deus. Tal proferimento, reprovável para
a esfera pública pensada em termos estritamente seculares, é lugar comum na
prática política atual. Há ainda casos em que a constituição de determinado país
é substituída por um livro religioso na posse de eleitos religiosos, simbolizando a
prevalência do texto sagrado em detrimento dos acordos laicos de
funcionamento político-institucional.
Para a tristeza de poucos e a felicidade de muitos, é inevitável que se
reconheça, muitas décadas depois da célebre afirmação de Friedrich Nietzsche,
que Deus não morreu. Nos moldes do preconizado nas homilias, a verdade é
queEle está no meio de nós e, como constatado por Jacques Lacan no título de
um de seus célebres escritos, houve um triunfo da religião.
É certo que Nietzsche não se referia à morte de um ente que nunca nasceu
e, por consequência, não poderia morrer. Tratava o filólogo alemão do decreto
de encerramento das atividades de um modo próprio de pensar, calcado no
pensamento ontológico e ilustrado por ele na figura do Deus cristão.
A verdade é que um secularismo ateu, radicalizado na assunção de
perspectivas niilistas e relativistas, não foi trilhado em larga escala em substituição
às antigas ontologias. Os entusiastas do empreendimento não-religioso deveriam
ter atentado, em seus precoces prognósticos, para os atrativos dos modos
místicos de compreensão da existência que, quando comparados ao que
oferecem os céticos, são visivelmente muito mais atraentes.
Mesmo com o fracasso da empresa secular radical, não se pode negar a
modificação estrutural ocorrida na cultura do ocidente. Houve uma mudança
substancial nos formatos e nos sentidos das adesões religiosas, algum
distanciamento dos sistemas totais de crença e justificação, em prol de
mecanismos pulverizados e coexistentes de dação de sentido metafísico. Muitos
fiéis de outrora são hoje peregrinos dos mais variados formatos místicos e
indicam parcelas significativas das novas realidades que integram os elementos
religiosos da sociedade.
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Ainda assim, os novos formatos coexistem com a permanência de crentes
pertencentes às grandes religiões de inspiração sistemática total, materializada, no
ocidente, nas três grandes religiões monoteístas: o judaísmo, o cristianismo e o
islamismo. Com formatos aproximados em alguns aspectos, tais sistemáticas
totais assumem ainda discursos e fundamentações de ordem universal, inevitáveis
elementos de tensão para a compatibilização da pluralidadeda esfera pública.
Ainda que se apresente com expressivas modificações sociológicas, o
fenômeno religioso não guarda menos importância do que possuía
anteriormente. Ao revés, a variação de seus formatos exige ainda mais perspicácia
na análise sociológica, sobretudo diante da não rara hipótese de discursos
metafísicos se mesclarem em estruturas supostamente seculares, tornando
complexa a sua fundamentação.
O reflorescimento significativo de visões metafísicas totais de mundo
(neopentacostalismos e reavivamentos de diversas ordens), no contexto de
escassez de utopias políticas atual, se soma ao debate sobre o caráter
verdadeiramente pós-metafísico das premissas seculares, principalmente quando
saberescientíficos são apresentados de modo fundamentalista, transformando-se
ontologicamente em novas religiões.
Nesse sentido, a possibilidade de construção coletiva e intersubjetiva na
esfera pública dependeriada necessidade de superação de pontos de vista
apreendidos de modo fundamentalista (seculares ou não), além da tematização
das possibilidades e procedimentos que viabilizem a necessidade de diálogo e
tomada coletiva de decisões.
À ultrapassagem dos modos ontológicos e metafísicos de compreensão do
mundo da vida, intitulado como estágio pós-metafísico de compreensão, foi
aglutinado o caráter pós-secular no plano do reconhecimento de legitimidade
para a prática dialogal. No primado pós-secular, a exclusividade da argumentação
religiosa cede lugar à pertinência das exposições de motivos de outra ordem,
buscando a reinserção consensual das visões místico-religiosas nos debates da
esfera pública.
É nesse contexto que surge o objetivo do presente escrito, o de tematizar
as práticas de cidadania e representação democrática atuais no ocidente, no que
tange aos discursos de fundamentação religiosa na esfera pública. O enfoque é
dado àpartir da ética discursiva proposta por Jürgen Habermas, refletindo-se
acerca de sua operacionalidade, considerando as tensões advindas da coexistência
de argumentos religiosos com as razões seculares.

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