Cidadania, democracia e direito à saúde

AuthorWladimir Tadeu Baptista Soares
Pages116-140
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CIDADANIA, DEMOCRACIA E DIREITO À SAÚDE
Wladimir Tadeu Baptista Soares
INTRODUÇÃO
Cidadania, democracia, dignidade da pessoa humana e saúde não são
conceitos que já nasceram prontos. Ao contrário, suas definições vêm sendo
historicamente desenvolvidas, variando conforme o tempo e o lugar, sem perder
de vista as condições políticas, sociais e econômicas do momento, bem como os
valores e concepções jurídicas, filosóficas, sociológicas e religiosas
compartilhados por toda a sociedade, e o conhecimento científico já acumulado
até então.
1. CONSTRUÇÃO HISTÓRICA DO CONCEITO DE SAÚDE
Em épocas remotas, saúde estava relacionada à obediência divina ou ao
apoderamento da pessoa por espíritos bons. Assim, a desobediência aos
mandamentos divinos era sinal de doença. Do mesmo modo, a doença era
entendida como causada pelos maus espíritos que se apoderavam da pessoa, de
modo que a cura e recuperação da saúde exigiam a expulsão desses espíritos maus
do indivíduo.
Mais tarde, Hipócrates de Cós (460-377 a.C.) afirmava que “A doença tem
uma causa natural e sua origem supostamente divina reflete a ignorância
humana”. Assim, Hipócrates – considerado o Pai da Medicina entendia o
homem como uma unidade organizada, cuja organização era sinal de saúde,
sendo a doença uma desorganização desse estado. Mais do que isso, valorizando
a observação empírica, ele revelava um entendimento epidemiológico da questão
saúde-doença, de modo que “suas observações não se limitavam ao paciente em
si, mas também a seu ambiente”. (SCLIAR, 2007, p. 33).
No século II d.C., Galeano (129-199) considerava saúde como um
equilíbrio endógeno do próprio homem ou um equilíbrio dos seus hábitos de
vida.
Na Idade Média, a doença era tida como consequência do pecado,
atribuindo-se à fé uma condição para a cura. Logo, saúde era uma questão de não
estar pecando, ao mesmo tempo que exigia uma firmeza na fé.
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No século XVI, Paracelsius (1493-1541) compreendia a saúde como uma
condição em que o organismo não estava sendo atingido por agentes externos
agentes estes que levariam a processos químicos causadores das doenças.
Desde o final do século XVIII e durante boa parte do século XIX, ganhou
força a chamada “Teoria Miasmática”, segundo a qual “acreditava-se serem os
miasmas emanações nocivas invisíveis que corrompiam o ar e atacavam o corpo
humano. Os miasmas seriam gerados pela sujeira encontrada nas cidades
insalubres, e também por gases formados pela putrefação de cadáveres humanos
e de animais” (MASTROMAURO, 2011, p. 1).
No final do século XIX, Louis Pasteur, usando um microscópio, revelou
a existência de microrganismos capazes de causar doenças, estabelecendo, assim,
um agente etiológico específico para determinadas doenças, que poderiam ser
prevenidas, diagnosticadas e curadas.
Ainda no século XIX, a partir de estudos de casos de cólera ocorridos em
Londres, John Snow (1813-1858) criou a expressão “contabilidade da doença”,
valorizando dados estatísticos para compreender o binômio saúde-doença,
afirmando que “se a saúde do corpo individual poderia ser expressa por números
sinais vitais -, o mesmo deveria acontecer com a saúde do corpo social: ela teria
seus indicadores, resultado de um olhar contábil sobre a população” (SCLIAR,
2007, p. 34). Aqui começava a emergir a estatística. Aqui começava-se a prestar
atenção nas frequências de batimento cardíaco e de pulso, na frequência
respiratória, na temperatura corporal, todos numericamente expressos.
Também no século XIX, William Farr (1807-1883) estabeleceu uma
relação entre números de mortalidade e desigualdades entre os distritos “sadios”
e os “não-sadios”, chamando a atenção para o fato de que condições sociais
estariam influenciando a saúde ou doença dos indivíduos. Ou seja, iniciava-se
aqui a observação de que fatores sociais seriam capazes de interferir no binômio
saúde-doença.
Neste mesmo século, Edwin Chadwick (1800-1890) fez um estudo sobre
as condições sanitárias dos trabalhadores da Grã-Bretanha, estabelecendo uma
relação entre condições sanitárias e saúde-doença, de modo que quanto mais
precárias as condições sanitárias locais, maior a incidência de determinadas
doenças.
Todavia, até esse momento, não havia um conceito de saúde
universalmente aceito, já que isso exigiria um consenso entre as Nações, o que
veio acontecer após a Segunda Grande Guerra Mundial, com a criação da

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