A cidadania planetária e a fraternidade no cenário de pandemia

AuthorCélia Barbosa Abreu
Pages207-232
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A CIDADANIA PLANETÁRIA E A FRATERNIDADE
NO CENÁRIO DE PANDEMIA
Célia Barbosa Abreu
INTRODUÇÃO
As ruas e cidades têm ficado cada vez mais vazias, enquanto o medo está
presente em toda sociedade. Não se trata, porém, de um problema local, que
atinge uma região, mas sim de algo que se irradia em termos globais e que não
escolhe classe social basta exemplificar com o caso do primeiro-ministro inglês,
Boris Johnson, que contraiu o novo coronavírus e que, possivelmente atinge,
de forma mais impactante, a população mais vulnerável, que fica à margem da
proteção do Estado.
A cidadania, em geral, é pensada a partir da ótica dos direitos e da
participação política. De fato, o cidadão tem o direito de exigir prestações estatais
nas áreas de educação e saúde, exemplificativamente, enquanto elemento do
“contrato social” entre indivíduo e Estado; embora, esta trate-se apenas de uma
acepção de ser cidadão. É preciso pensar a cidadania também pela ótica dos
deveres, em especial pela coletividade, e, mais que isso, defender a concepção de
uma cidadania global/planetária.
No mundo contemporâneo, o fenômeno da globalização é cada vez mais
visível, e as fronteiras entre países ficam cada vez mais fluidas; promove-se uma
transição de ideias, culturas e valores, mas prevalentemente a globalização
econômica. Não vivenciamos mais um mundo bipolar da Guerra Fria, em que os
embates entre capitalismo e socialismo poderiam ser pensados na lógica de um
jogo de xadrez, ou seja, a cada movimentação de um sistema econômico, o ataque
de outro. Hoje não, o capital é mais que transnacional, o Estado-Nação perde
espaço para grandes concentrações de capital e foi sendo negligenciada uma
questão fundamental: a preocupação com a pessoa humana.
O aparecimento do novo coronavírus no final de 2019 e início de 2020
tem colocado em questão o quanto precisamos resgatar um discurso que valoriza
a humanidade e uma cidadania planetária, bem como pensarmos não apenas em
função das nacionalidades, mas além disso: enquanto cidadãos do planeta Terra.
Desta forma, na qualidade de cidadãos globais, defender-se-á que um
possível caminho para o combate da pandemia reside no exercício desta
cidadania planetária e se fundamenta no acolhimento da prática da fraternidade.
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A fraternidade que estava presente no lema da Revolução Francesa, considerado
por muitos historiadores o marco da história contemporânea, será justamente a
partir dela que se traçará uma explicação para o exercício da cidadania planetária.
Assim sendo, a presente pesquisa se desenvolverá em três partes. Na
primeira, será realizada uma análise do conceito de cidadania, suas concepções e
dimensões, até chegar àquela de cidadania planetária, também identificada como
“nossa humanidade comum”, “unidade na diversidade”, “nosso futuro comum”,
“nossa pátria comum”. Nela, será possível falar do cidadão do mundo, que vive
no mundo globalizado. Entretanto, se verá a dificuldade de o mundo se ver e se
perceber como mundo, da humanidade da mesma forma fazê-lo enquanto tal.
Nesse sentido, na segunda parte se notará, como consequência, que a
humanidade não adquiriu nenhuma proteção imunitária contra os males que a
devastam e, então, se dará conta do quanto desprotegida ela está até os dias de
hoje. Daí porque, sujeita a situações de agonia planetária, como é o caso desta
crise pandêmica, acerca da qual nos debruçaremos. Na terceira e última parte,
serão trazidos, em especial, dois mecanismos de enfrentamento do fenômeno
social em curso: a cidadania e a fraternidade. Buscaremos entender, em termos
de realidade brasileira, se estas ferramentas estão sendo usadas em face do novo
coronavírus e da Covid-19 e em que medida. Indo mais adiante, será visto como
a fraternidade deve ser entendida na ordem jurídica de um Estado Constitucional.
A metodologia do trabalho é eminentemente bibliográfica.
1. CIDADANIA PLANETÁRIA E GLOBALIZAÇÃO
A cidadania pode ser conceituada como o conjunto de direitos e deveres
de um indivíduo. Não é, contudo, um conceito simples, mas, ao revés,
compreende uma concepção complexa, que pode ser mais ampla ou mais restrita.
Assim, abarca, exemplificativamente, as concepções neoliberal, liberal e socialista
democrática (valendo recordar que o socialismo autoritário não admite a
democracia como valor universal, desprezando a cidadania como valor), e ainda
a concepção consumista apoiada na competitividade capitalista. Tida como a
cidadania de mercado, pode ser identificada como condição do sujeito exigir a
qualidade dos produtos e serviços adquiridos.
Interessante destacar que o surgimento da concepção da cidadania liberal
representou um impacto social relevante à medida que foi substituída a figura do
súdito, que só tinha deveres, e sua fundamentação na noção de que todos são
iguais perante a lei permitiu requerer a inclusão dos despossuídos (MONDAINI,
2012, p. 131). Esta concepção, considerando a Europa Ocidental, representou a

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