Democracia e transparência no contexto da cidadania digital

AuthorClodomiro José Bannwart Júnior
Pages30-46
30
DEMOCRACIA E TRANSPARÊNCIA NO CONTEXTO
DA CIDADANIA DIGITAL1
Clodomiro José Bannwart Júnior
INTRODUÇÃO
As reflexões que seguem compreendem muito mais um esboço das
preocupações relativas ao desenho institucional na qual a democracia se move
atualmente, do que um trabalho fixado em parâmetros teóricos concretos. Parte-
se do pressuposto de que democracia e a transparência constituem dois lados de
uma mesma moeda e são, portanto, indissociáveis. Afastar a transparência do
exercício democrático significa, em boa medida, aniquilar e esvaziar o conteúdo
peculiar da democracia que é assegurada pela manifestação plena, autêntica e
soberana do povo em simétrica com o respeito aos direitos fundamentais.
O texto busca firmar a importância da relação entre política e direito e a
defesa de que os pressupostos jurídico-políticos são indispensáveis na realização
de uma sociabilidade garantidora de diretos e de obrigações. Extrai-se da
confluência entre direito e política as condições de possibilidade de realização da
cidadania. Recupera na história, no contexto do Império Romano, a destreza da
cidadania experenciada pelo Apóstolo Paulo, a partir dos Atos dos Apóstolos.
Retoma, enfim, o debate contemporâneo ao apresentar as dificuldades que
insurgem das novas mídias sociais, naquilo que muitos tem defendido constituir
uma cidadania digital, terreno em que as fakenews ganham força. Por derradeiro,
o texto visa a destacar os novos problemas que emergem do exercício da
cidadania, os quais ainda não foram tematizados na sua integralidade. A reflexão
que segue está menos ocupada em delinear soluções, e sim ajudar a esboçar
problemas nunca vivenciados.
1. CIDADANIA: um conceito e uma prárica de socialização
Os Direitos Políticos, contidos no capítulo V da Constituição Federal,
encontram guarida no Art. 14 da Carta Magna ao ressaltar que “a soberania
1 A versão preliminar do presente texto foi apresentada na Universidade Mackenzie, em São Paulo,
no dia 04 de março de 2020, em mesa-redonda destinada a debater “ transparência, improbidade e
controle de dados na gestão pública”. No dia 14 de outubro de 2020, a versão final do texto foi
apresentada na conferência de encerramento do II Seminário Internacional sobre Democracia,
Cidadania e Estado de Direito, realizado na Universidade de Vigo, Galícia, Espanha.
31
popular2 será exercida pelo sufrágio universal e pelo voto direto e secreto, com
valor igual para todos, e nos termos da lei...”. É importante destacar a diferença
entre direito político e capacidade política. Direito Político implica no direito de
o cidadão participar, de forma democrática, da organização, funcionamento e
gestão do Estado. Já a Capacidade Política é a aptidão pública, devidamente
reconhecida pela ordem jurídica, de o cidadão exercer o poder de sufrágio, a
saber, o direito de votar e de escolher os seus representantes de forma legitima,
além de poder ser votado. Nesse sentido, o voto é considerado o instrumento
pelo qual o sufrágio se concretiza na prática.
A capacidade política inicia-se com o alistamento eleitoral, condição que
qualifica o indivíduo como cidadão e lhe confere a capacidade eleitoral. A
capacidade eleitoral é dupla: ativa e passiva. A capacidade eleitoral ativa consiste
no direito de votar. A capacidade eleitoral passiva implica no direito de ser
votado. A capacidade eleitoral no Brasil é adquirida mediante o alistamento
eleitoral, de forma obrigatória aos maiores de dezoito anos e menores de setenta
anos, ou facultativa aos analfabetos, maiores de setenta anos e aqueles com idade
entre dezesseis e dezoito anos.
Os direitos políticos estão intimamente vinculados ao direito de
nacionalidade. Para entender essa relação é importante ter presente os três
elementos que constituem o Estado: território, poder soberano e povo. O povo,
apesar de ser um conceito genérico, é o que detém a prerrogativa de exercer os
2 O conceito de soberania popular gesta-se lentamente no pensamento filosófico, alcançando seu
ápice no século XIV, com o debate colocado pelos franciscanos. Trata-se de debate que se arrasta
desde a Antiguidade grega, com a cosmovisão fornecida pelos filósofos do período clássico para
pensar a política, a ética e o direito. Os gregos davam prevalência à ideia de ord em regrada pelo
logos (razão). Essa visão racionalista do mundo (ser) será contraposta por Agostinho de Hipona
no cenário roma no-cristão, dando prioridade ao conceito de vontade (dever-ser). Essas duas
tradições racionalista e voluntarista encontram-se em disputa na Escolástica do século XIII
para o XIV, com uma controvérsia travada entre dominicanos e franciscanos. Do lado dominicano,
ninguém mais do que Santo Tomás de Aquino a defender a tradição racionalista. Do lado
franciscano, vários nomes configuram-se na linha de frente dessa cizânia, entre eles, Guilherme de
Ockham, a defender a tradição agostiniana de matriz voluntarista que prima pela autonomia da
vontade individual e, na sequência, a autonomia da vontade soberana do povo como condição de
legitimidade do exercício do poder político. Alfredo Culleton sintetiza bem esse momento da
história do pensamento filosófico medível. “Trata-se, aqui, da filosofia do primad o da vontade
erigida sobre uma base teológica, de uma moralidade voluntarista contraposta a outra infinitamente
mais racionalista, que é a de Tomás. [...] É a filosofia do indivíduo que consagra sua independência
e liberdade contra a ra zão, que é puro instrumento. A ação do indivíduo é uma escolha
suprarracional, uma escolha pessoal de amor. É a descoberta da pessoa individual e é o afastamento
dos gêneros, espécies e naturezas de que se utilizava a filosofia aristotélica-tomista para
compreender o mundo. É ainda a exaltação da liberdade e do individualismo, fruto de uma visão
de mundo teológico-cristã-franciscana, fonte decisiva do pensamento filosófico-jurídico moderno”
(CULLETON, 2011, p. 24).

To continue reading

Request your trial

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT