Crise fiscal e cidadania: questões prementes da democracia num capitalismo financeirizado

AuthorDaniela Olímpio de Oliveira
Pages287-306
287
CRISE FISCAL E CIDADANIA: questões prementes da
democracia num capitalismo financeirizado
Daniela Olímpio de Oliveira
INTRODUÇÃO
Na contemporaneidade de um capitalismo financeirizado, ausência de
contribuintes fiscais, eliminação de fronteiras territoriais, linguagem por
algoritmos, dissensos e consensos anulados por uma democracia formal,
exploração da pobreza pelo consumo e pela tecnologia, questionar política,
democracia e cidadania, importa, antes, no deslocamento do debate para o espaço
das finanças públicas e da estrutura do endividamento público. As opções de um
Estado do Hemisfério Sul parecem esvaziadas quando se evidencia os
fundamentos de um sistema orçamentário e de comprometimento fiscal, que só
promovem rolagem de uma história econômico-social. Mais ainda, quando o
Estado é atravessado pela linguagem teocrática e fundamentalista.
No Brasil, a auditoria da dívida pública torna-se condição de primeira
necessidade para o enfrentamento do debate sobre o tamanho do Estado.
Qualquer discussão sobre cortes e gastos fica secundária e superficial, senão
precedida pela evidência dos mecanismos da dívida pública, rolagem de juros,
amortizações e financeirização dos gastos públicos. Discussão essa que vem
sendo blindada por irascíveis práticas discursivas desviantes, constitutivas de uma
histeria social e terrorismo psíquico que tematiza, sem problematizar, a família,
Deus, doenças, sexo, moral e militarização. Mecanismos de uma linguagem que
distancia o próprio agir discursivo, isolando a sociedade em seus abismos de um
entendimento.
O problema é agravado pela destruição de projetos sociais que pretendem
a emancipação e resgate de uma humanidade, pela diversidade dos saberes.
Projetos como a educação pública gratuita. Estes nichos são os primeiros a serem
combatidos, muitas vezes entoados por aqueles próprios destinatários de tais
projetos, em absoluta cegueira social. Enquanto isso, o capitalismo avança nestas
redescobertas de rolagem, de agigantamento por sobre as estruturas,
alimentando-se da miséria dos Estados historicamente explorados, que se
entendem agora em igualdade jurídica na soberania dita pelos códigos
universalistas de linguagem.
288
Discutir a dívida pública é discutir sobre a estrutura do Estado jurídico
contemporâneo, latino e sul-americano, brasileiro e negro, que respira em agonia
seus suspiros de sobrevivência.
No Brasil, em meio a camadas intercortadas de uma modernidade tardia,
as realidades sociais, variadas e contraditórias, são contrastadas num projeto
democrático. Os sistemas de direito, e o tributário aqui em evidência, se
estabelecem numa espiral que conjuga tecnologia, informação, financeirização,
com velhos modos de conviver, trocar, acumular e ostentar da sociedade
brasileira. Um amálgama de estruturas, onde o capital internacional se sobrepõe
às velhas formas de produção de mercadorias, abaixo de uma fraca regulação,
consentida e aproveitada, deixando profundas marcas nestas contradições que
são seladas por uma forte racionalização e especialização dos saberes técnicos.
A experiência do debate tributário no Brasil a cada dia se aproxima um
pouco mais das questões nucleares, sociofilosóficas, que envolvem e que refletem
a justiça da sua própria história. A cidadania não mais se desenlaça de campos da
técnica, como a dívida púbica, a questão de gastos sociais, a financeirização das
contas de governo, as opções da macroeconomia. Pensar em educação fiscal é
trazer à baila as opções de racionalidade de uma máquina administrativo-fiscal, a
moral tributária de sujeitos não-tributáveis, não-residentes, não-personificados.
Discutir as bases da cidadania, agora, tornou-se assunto da modernidade
complexa e racional, construída dialogicamente e viciada em sua linguagem. A
cidadania dá um salto gigantesco, para despir-se da ingênua relação com o voto,
mas, paradoxalmente, se volta ao voto, em seu desenho social, histórico e
econômico, como uma lógica de mercado, um jogo democrático, arquitetado
abaixo de marketing de bem-estar, de ideologia das liberdades e dos consumos,
da frivolidade da privacidade que se toma em abstenção política.
O presente texto faz-se em ensaio que recobra fatos e desenhos político-
sociais no decorrer da história dos cidadãos brasileiros, de sua constituição
enquanto tal, nas suas tensões e distensões dos discursos econômicos, muitos
destes brotados em lutas, insurgências sangrentas. A cidadania, de um ponto de
vista fiscal, é a cidadania facetada num aspecto que comumente o próprio cidadão
desinteressa-se por descobrir. Terreno minado de linguagens técnicas e ideologias
encantadoras. Pouco reais, por serem pouco históricas.
Mas, antes, como estamos em meio à nossa identidade capitalista?

To continue reading

Request your trial

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT