Direito de acesso à informação, emancipação e exercício da cidadania sob ameaça no Brasil

AuthorLuís Antonio Alves Machado
Pages47-81
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DIREITO DE ACESSO À INFORMAÇÃO, EMANCIPAÇÃO E
EXERCÍCIO DA CIDADANIA SOB AMEAÇA NO BRASIL
Luís Antônio Alves Machado
INTRODUÇÃO
Tendo como contexto os explícitos ataques à Lei de Acesso à Informação
(LAI), patrocinados diretamente pelo atual chefe do Poder Executivo brasileiro,
Jair Messias Bolsonaro, cujo governo se destaca por atitudes e discursos
antidemocráticos, o capítulo ressalta a relevância da LAI para uma prática cidadã
consistente e para um viver efetivamente democrático. Analisar o exercício da
cidadania em perspectivas locais, com suas características, nuances e suas
ameaças, integra o esforço maior de se discutir e analisar uma cidadania em
perspectiva global.
Em vigor no Brasil desde maio de 2012, a LAI abre caminhos para uma
verdadeira prática democrática. Trata-se do entendimento de que o cidadão bem-
informado possui maior capacidade de ação na construção social, interagindo e
interferindo de forma mais consistente na coletividade a que pertence,
propiciando assim uma atuação mais próxima do agir comunicativo
habermasiano e da noção de formação e exercício do verdadeiro poder, de
Hannah Arendt. Algo que, certamente, é desinteressante a governos com
pretensões ditatoriais.
Isso porque informação acessível é também prevenção à existência de
obscuras zonas sigilosas na estrutura estatal. Na visão arendtiana, o sigilo surge
modesto em regimes totalitários, para em seguida ser oficializado e ampliado. De
sua consolidação germinam e se estabelecem as ditaduras. Está aí uma boa razão
para não se admitir retrocessos democráticos. No caso em questão, mais
precisamente, uma boa razão para que a sociedade não aceite a atrofia de um
acesso à informação tão relevante para um saudável e efetivo exercício da
democracia.
O acesso à informação está consolidado como um direito fundamental na
Constituição da República Federativa do Brasil e em tratados internacionais de
direitos humanos. Trata-se, sem dúvida, de algo essencial para o exercício da
cidadania no processo de construção social. Percebe-se no exercício deste direito
à informação uma forte relação com a democracia. Isso porque uma efetiva e
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consistente participação popular nas decisões de um Estado ou qualquer outra
forma de coletividade depende não só da oportunidade e do espaço para
argumentação, mas também da qualidade desta argumentação. Acesso à
informação, portanto, é também elemento para o exercício de uma verdadeira
liberdade de expressão e cidadania.
Sem possuir informações exatas e confiáveis das questões de interesse
público, as argumentações dos cidadãos podem não encontrar o adequado lastro
na realidade. Assim, torna-se difícil a realização de uma defesa embasada e
concreta de um ponto de vista específico sobre os problemas e soluções que
dizem respeito ao Estado. Num contexto de informação restrita ou manipulada,
a argumentação do cidadão pode acabar se tornando não mais que uma inspirada
manifestação de opinião, muitas vezes desprovida de dados, descrições e demais
informações adequadas sobre o funcionamento do Estado e sobre as
especificidades da máquina estatal. O cidadão, assim, acaba desprovido de uma
real capacidade de interferência na esfera pública, longe do exercício de uma
efetiva cidadania e da construção de um poder baseado no diálogo e
entendimento.
É neste contexto que este capítulo aborda a Lei de Acesso à Informação,
que tem como foco o acesso à informação produzida e custodiada por órgãos
públicos e aquela referente a interesses de caráter público presentes tanto em
iniciativas públicas quanto em iniciativas privadas. Assim, a referida lei tem o
potencial de municiar os cidadãos brasileiros com as informações necessárias
para conhecer as razões das decisões do Estado e entender o funcionamento das
estruturas administrativas estatais, podendo ser um canal para fiscalizar a lisura
dos procedimentos e para formar opinião e possibilitar uma interação de forma
eficaz no processo de construção social. Essa atuação embasada e bem-
informada potencializa uma real participação de cada cidadão nas decisões que
afetam a todos os cidadãos, ou seja, é o caminho para um exercício de cidadania
mais pleno, de uma cidadania verdadeiramente ativa.
Uma prática democrática com base em discursos desinformados não dá
consistência à voz dos cidadãos, não passando, assim, de mera aparência
democrática. Para de fato existir democracia é preciso que os cidadãos não apenas
possam falar, mas saibam com muita propriedade sobre o que estão falando,
podendo efetivamente influenciar as decisões de suas cidades, estados e nações
com base em informações que lhes pertencem por direito.
Jürgen Habermas (2012), ao defender a situação ideal de fala em sua Teoria
do Agir Comunicativo, refere-se a um equilíbrio de formas e oportunidades de
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expressão entre os concernidos de determinado contexto social. A Lei de Acesso
à Informação permite que o cidadão comum acesse os mesmos conhecimentos
e informações que os representantes do Estado dispõem para defenderem suas
atitudes e pontos de vista. Por outro lado, vale destacar que uma das pretensões
de validade de um agir comunicativo é que o conteúdo da argumentação seja
verdadeiro. Portanto, ter acesso a informações oficiais de interesse público,
direito previsto na Lei de Acesso à Informação, é ter acesso a esta verdade
necessária para formação do discurso e da devida situação de argumentação em
um agir comunicativo.
Em outro viés desta análise do direito à informação que abordamos neste
capítulo, podemos encontrar embasamento na obra de Hannah Arendt (1994),
que vê no diálogo o caminho para construção e exercício do que ela considera o
poder real: aquele resultante da exposição de ideias e desejos e do debate visando
o acordo entre os envolvidos em uma coletividade. Em suas publicações,
profundamente marcadas pelo horror com as atrocidades do Holocausto e o
choque com o potencial da maldade humana, ela descarta enfaticamente o uso
da violência para formação e exercício de poder.
O verdadeiro poder estaria na ação das comunidades políticas e seria
resultado da capacidade de agir conjuntamente. Um agir conjunto implica
necessariamente na análise da realidade e na tomada de decisões de forma coletiva
e democrática, nunca por imposição violenta. Decidir democraticamente
necessita de argumentação e diálogo, que têm como relevantes elementos a
informação precisa e a correta percepção da realidade. Arendt também destaca a
relevância da transparência para que decisões relativas a interesses públicos
possam estar devidamente legitimadas. Sua obra inclui pontos que analisam como
o acesso à informação nos permite os benefícios da transparência ao mesmo
tempo em que evita os males do sigilo, tão maliciosamente interpretado como
discrição e estratégia em governos de viés autoritário, como o que atualmente se
estabeleceu no Brasil em nível federal.
1. ESCALADA ANTIDEMOCRÁTICA E O ÁPICE BOLSONARISTA
O Brasil vem vivendo uma escalada antidemocrática mais contundente
desde 2016. Naquele ano, em 31 de agosto, a presidente da república eleita, Dilma
Rousseff, foi destituída de seu cargo através de um processo de impeachment.
Em que pese o instrumento jurídico constitucional ser devidamente previsto e
plenamente válido e ter tido seus ritos formalmente seguidos, as motivações que

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