A tridimensionalidade constitucional da propriedade e a sua incidência no direito brasileiro

AuthorNelson Rosenvald
ProfessionPós-Doutor em Direito Civil na Universidade Roma Tre (IT).
Pages1445-1468
— 1445 —
A TRIdIMENSIONALIdAdE CONSTITUCIONAL dA
PROPRIEdAdE E A SUA INCIdêNCIA NO dIREITO
BRASILEIRO
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A propriedade é também um problema técnico, mas nunca é somente um
problema técnico: por debaixo, os grandes arranjos das estruturas; por cima,
as grandes certezas antropológicas põem sempre a propriedade no centro de
uma sociedade e de uma civilidade. A propriedade não consistirá jamais em
uma regrinha técnica, mas em uma resposta ao eterno problema da relação
entre homem e coisas, da fricção entre mundo dos sujeitos e o mundo dos
fenômenos, e aquele que se propõe a reconstruir sua história, longe de ceder
a tentações isolacionistas, deverá, ao contrário, colocá-la sempre no interior
de uma mentalidade e de um sistema fundiário com função eminentemente
interpretativa” (Paolo Grossi – A História da Propriedade e Outros Ensaios)
1. HOMENAGEM A CARLOS LASARTE
Carlos Lasarte é um cultor do direito privado e merece todas as nossas
homenagens. Sou Brasileiro, mas desde 2017 tive a oportunidade de conviver com
o mestre em diversos seminários, estreitando a amizade em minha estância pós-
doutoral em Madrid. Conhecedor de sua Predileção pelo universo dos direitos
reais, escrevi este texto sobre a ressignificação das propriedades no cenário atual. Fiz
uso da legislação brasileira, porém o enfoque doutrinário se aplica às democracias
liberais que seguem o rule of law.
2. A DESCONEXÃO ENTRE AS PROPRIEDADES E O NOVO
MERCADO
A desintegração da propriedade é um fato inequívoco. Não como um dado
exclusivo da pós-modernidade, porém como mais um capítulo em uma odisseia
1 Pós-Doutor em Direito Civil na Universidade Roma Tre (IT). Pós-Doutor em Direito Socie-
tário na Universidade de Coimbra (PO). Professor Visitante na Universidade de Oxford (UK). Doutor
e Mestre em Direito Civil pela PUC/SP. Procurador de Justiça do Ministério Público de Minas Gerais.
Professor do PPGD do IDP/DF
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iniciada na revolução industrial, na qual a titularidade incorpórea auspiciosamente
se torna mais relevante que o domínio físico dos bens de raiz. Em ambientes de
instituições democráticas, afloram os incentivos para que patentes, softwares e
direitos autorais façam a roda da fortuna girar. A Apple é a empresa mais valiosa da
história, apoiada no binômio intangível inovação tecnológica/design 2. As riquezas
das pessoas e nações passaram a ser definidas pela dinâmica capacidade de
criação, em detrimento ao que a natureza estaticamente lhes reserva, como terras e
commodities. 3
O cerne do domínio se deslocou da posse de coisas e do capital físico para a
criatividade humana, o capital intelectual. A propriedade clássica, caracterizada
pelo poder de ingerência socioeconômica sobre a coisa e a visibilidade de sua
exteriorização pelo exercício dos atributos do uso e fruição é ultrapassada pela
propriedade incorpórea, na qual o artífice da criação intelectual é remunerado pela
cessão da técnica, reservando para si a titularidade do bem. Diversos modelos de
propriedade convivem com as suas peculiaridades. Daí que hoje se fala em direito
das propriedades, ao contrário do que se extraí da arcaica estrutura monopolística
sugerida pelo artigo 1227 do Código Civil Brasileiro. 4
O que há de atualíssimo nessa discussão é a própria redefinição do conceito
de propriedade e o mais importante, o seu próprio embasamento filosófico e
sociológico. A propriedade enucleada no “ter” conferiu suporte ao indivíduo
moderno. Em um primeiro momento a sociedade estamental é abolida e o indivíduo
se liberta da condição perene de nobre ou campesino. A única possibilidade de a
pessoa perseguir a sua autonomia se dava pela aquisição da titularidade, que lhe
propiciasse independência material e social, passando a existir por si próprio, com
possibilidade de conduzir a própria vida, preocupando-se com o seu perímetro
subjetivo e cultivando a sua interioridade. A propriedade individual como acesso a
cidadania já teve os seus tempos de glória. 5
2 Mais um ano se passou e, mais uma vez, a Apple está no topo das empresas mais valiosas do
mundo. A marca foi avaliada em US$ 170 bilhões, de acordo a Forbes. Esse é o sétimo ano consecutivo
que a companhia de Cupertino aparece nessa mesma posição no ranking. O top 10 do ranking deste
ano divulgado pela Forbes é quase todo feito de empresas de tecnologia: 1. Apple; 2. Google; 3. Micro-
so; 4.Facebook; 5.Coca-Cola; 6.Amazon; 7.Disney; 8.Toyota; 9.McDonald’s; 10.Samsung; www.tec-
mundo.com.br/mercado/119621-novo-apple-empresa-valiosa-mundo.htm capturada em 21.7.2017.
3 Como pondera Carlos Lasarte, “La visión de la propiedad como una institución plural fue po-
sible únicamente cuando la doctrina comenzó a dudar de la plasticidad del modulo propuesto por el le-
gislador del siglo XIX; es decir, cuando, desde una perspectiva realista, se ha reconocido la imposibilidad
de reconducir al concepto codicado la variedad de tipos o manifestaciones que la idea de propiedad
presenta en nuestros días. Compendios de derechos reales. Madrid: Marcial Pons, 2017, p. 3.
4 Art. 1.227. Os direitos reais sobre imóveis constituídos, ou transmitidos por atos entre vivos,
só se adquirem com o registro no Cartório de Registro de Imóveis dos referidos títulos (arts. 1.245 a
1.247), salvo os casos expressos neste Código.
5 CASTEL, Robert. La Inseguridad social. Buenos Aires: Manantial, 2015, p. 28.

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