Direito concorrencial: perspectivas políticas

AuthorJosé Antonio Farah Lopes de Lima
Pages37-57

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2.1. Introdução

O compromisso da Comunidade européia em promover um mercado competitivo avançou de modo significativo quando o Tratado da Comunidade Econômica européia – TCEE foi estabelecido no ano de 1957, pois as economias européias até então apresentavam elevados índices de controle estatal, cartéis legais e políticas protecionistas. Hoje, a crença da Comunidade européia no mercado é fortemente estabelecida, pois a política econômica da Comunidade é “conduzida de acordo com os princípios de uma economia de mercado aberta e livre concorrência”1.

Em uma economia de mercado, o consumidor, e não o Estado, determina que bens e serviços são fornecidos. A demanda dos consumidores é que dirige a produção. Porém, mesmo se os consumidores são soberanos em suas decisões, uma economia de mercado não eliminará todas as ineficiências: a escassez significa que a sociedade é incapaz de satisfazer a demanda de todos os consumidores. Assim, o direito concorrencial não é elaborado como uma política altamente intervencionista para garantir o bom funcionamento de todos os segmentos da economia. Também este ramo do direito não tem a missão de criar incentivos às empresas para que estas se comportem no sentido de promover o bem estar econômico. Na verdade, o fim do direito concorrencial é mais modesto: condenar comportamentos anticoncorrenciais. Na Comunidade européia, o artigo 3(1)(g) TCE estabelece que a Comunidade européia terá um “sistema que garanta que a concorrência no mercado interno não será distorcida”. O sistema posto em prática pelo Tratado CE estabelece três regras principais para proteção da concorrência, que são dirigidas às empresas:

1) as empresas são proibidas de entrarem em acordos que façam restringir a concorrência (por exemplo, cartéis que fixam os preços dos produtos);

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2) as empresas dominantes não podem prejudicar o processo concorrencial; e

3) fusões que possam prejudicar a concorrência também são proibidas.

Estas regras são aplicadas e controladas com rigor pela Comissão européia, órgão de natureza supranacional que possui um Diretoria Geral para a Proteção à Concorrência (“Directorate General for Competition”) dedicada a tarefas ligadas a problemas de natureza concorrencial. O Tratado CE também impõe aos Estados membros da União européia um número de obrigações para reduzir barreiras ao comércio, que complementam as políticas concorrenciais, com a criação de um mercado europeu único.

Não é possível ir além destas considerações gerais sobre o direito concorrencial sem dizer algo controverso. Por exemplo, é difícil fornecer uma definição de “concorrência” que seja de aceitação geral. Também é muito difícil que exista um consenso a respeito das razões para a existência do direito concorrencial. As controvérsias sobre o papel do direito concorrencial na regulação de mercados têm sido expressas, por exemplo, na linguagem acadêmica dos Estados Unidos. O Professor Fox considera que “existe uma batalha pela alma do direito concorrencial”2. Esta batalha tem sido travada de modo vigoroso não apenas em revistas acadêmicas como também (ou principalmente) nas Cortes de Justiça. Em alguns casos da Suprema Corte norte-americana, os conflitos entre as partes contrárias estão contando com a participação de grandes economistas e eminentes juristas, representando ambos os lados, dependendo de suas visões sobre os fins do direito concorrencial3. As controvérsias sobre o direito concorrencial não são menores no mercado europeu: um jurista que analisa os trabalhos da Comissão européia neste setor afirma que: “conflitos sobre política (e direito) concorrencial são endêmicos”4.

Ao entrar na batalha pela “supremacia normativa”, nós adotamos nesta obra a seguinte posição: é impossível identificar a “alma” do direito concorrencial. Na verdade, o máximo que pode ser feito é mostrar que existem diversas (e legítimas) opiniões a respeito do que o direito concorrencial pode ser e fazer. Além disso, dentro de um certo país, os fins do direito concorrencial podem mudar ao

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longo do tempo, mesmo sem alterações ou emendas nos textos legislativos. Isto é possível devido à natureza aberta da maioria das legislações concorrenciais, que assim permite uma grande variedade interpretativa. Deste modo, para se entender o direito concorrencial e sua finalidade, não basta apenas ler textos legislativos e verificar decisões judiciais de acordo com os princípios gerais de hermenêutica: é preciso também compreender as forças particulares que têm influenciado a direção da política concorrencial em certos momentos de sua existência.

O Professor Bork tem uma visão semelhante. Em seu livro The Antitrust Paradox, ele considera que “uma política concorrencial não pode ser tida como racional até sermos capazes de responder a esta questão: qual é o fim do direito concorrencial? Quais são seus objetivos? Tudo o mais segue da resposta a estas questões...Somente quando a questão dos objetivos do direito concorrencial é respondida é que é possível estabelecer um corpo coerente de regras substantivas/materiais”5. Todavia, em contraste com a certeza do Professor Bork sobre a possibilidade de responder à questão supracitada, nossa posição nesta obra é que se é verdade que toda decisão concreta em um caso de direito concorrencial requer de forma preliminar a resolução da questão sobre os fins do direito concorrencial, até hoje nenhuma autoridade do direito concorrencial tem usado este direito de acordo com um número imutável de objetivos. Os fins do direito concorrencial variam com o tempo. Mesmo em um determinado momento, o direito concorrencial pode vir a perseguir objetivos distintos, ou até mesmo contraditórios entre si. Deste modo, a melhor maneira de se entender a evolução do direito concorrencial e seu futuro é a verificação (e análise) das diferentes respostas à questão de Bork e como estas respostas afetam a forma e o conteúdo das decisões individuais e a própria direção do direito concorrencial.

Antes da análise das regras materiais do direito concorrencial, é importante se ter uma idéia da variedade de objetivos que a aplicação do direito concorrencial pode visar. O corpo de regras que nós chamamos de “direito concorrencial”, e cada decisão alcançada, reflete uma visão particular do papel do direito concorrencial, ou uma posição de conciliação, que reflete as tensões entre os elaboradores de leis sobre os fins de uma regra em particular. Somente ao se entender a origem “ideológica” de uma regra ou decisão concorrencial é

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que é possível uma análise e revisão racional da mesma. É muito simplista afirmar que uma decisão é errada porque a autoridade que executa (ou aplica) o direito concorrencial ao caso concreto teve uma visão econômica equivocada, quando não existe consenso mesmo entre economistas sobre a perspectiva econômica correta para resolver o problema. Além disso, a decisão pode ser economicamente considerada irracional sob qualquer prisma, mas pode ter como base valores políticos/sociais bastante respeitados. Por exemplo, a permissão de uma fusão com uma empresa deficitária: se a fusão por um lado reforça o monopólio do adquirente (aspecto negativo), pelo menos por outro lado ela é uma boa opção para salvar um grande número de empregos. Deste modo, o direito concorrencial pode ser entendido e então criticado se o estudioso deste direito enxergar as regras materiais em função do número de considerações que animam seu desenvolvimento e variações.

De acordo com nosso ponto de vista, é necessário considerar os fatores que influenciam o direito concorrencial (bem como as decisões administrativas e judiciais que surgem da aplicação deste ramo do direito) com base na interação entre três componentes: a decisão política sobre os fins do direito concorrencial; uma teoria econômica sobre como os mercados se comportam, como e quando eles não funcionam, e como falhas no mercado podem ser remediadas; e a instituição que tem a missão de fazer valer (“enforcing”) o direito concorrencial.

Quanto ao primeiro componente da interação supracitada, ao responder à questão política, duas respostas que se encontram em extremos opostos podem aparecer: ou o direito concorrencial visa apenas a promoção do bem estar econômico, ao assegurar que as empresas se comportam de tal maneira que elas minimizam custos e maximizam os beneficios que os consumidores podem obter dos recursos escassos que estão disponíveis (em termos econômicos, a busca das eficiências produtiva, dinâmica e alocativa), ou o direito concorrencial é usado para alcançar uma variedade de outros interesses públicos, como por exemplo, a maximização da liberdade econômica, a preservação e ampliação de empregos, a promoção de empresas mais competitivas, a facilitação de restruturação de empresas, a proteção de empresas pequenas, a preservação de valores culturais, a proteção ao meio ambiente, etc. Entre os dois extremos do direito concorrencial como “guardião do bem-estar econômico” ou como “intrumento de política pública”, posições intermediárias são possíveis onde apenas uma pequena faixa de objetivos de política pública – além do bem-estar econômico – é visada.

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Ao enfrentar a questão econômica, segundo componente da interação supracitada, duas posições extremas também podem ser verificadas. Em um extremo, nós encontramos economistas que adotam uma postura estrutural e sugerem que quanto menor o número de empresas numa setor industrial particular, maior a tendência de falhas e problemas no mercado. Assim, um monopólio prejudica a realização da maioria dos objetivos políticos visados pelo direito concorrencial, enquanto que um mercado com muitos compradores e muitos vendedores opera de modo a garantir o bem-estar dos consumidores. No outro extremo, existem...

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