Algumas reflexões sobre a «invisibilidade» da violência de gênero em tempos de pandemia

• Author: Ana Lucia Sabadell/Thamires Vieira
• Profession: Professora Titular da Faculdade Nacional de Direito/Mestre em Direito e Advogada
• Pages: 491-518

| BRUNO AMARAL MACHADO | CEUB | COORDENADOR |

Resumo A prática do isolamento como medida preventiva e de comba-

te à Covid-19 trouxe à tona a discussão sobre a violência doméstica pra-

ticada contra as mulheres no Brasil. As autoras entendem que a tutela

jurídica da intimidade favorece o processo de denegação deste tipo de

violência e apresentam uma ref‌lexão inovadora sobre a situação brasilei-

ra, destacando algumas medidas práticas que podem ser tomadas para

enfrentar a violência contra a mulher no atual contexto de pandemia.

Palavras-chave Isolamento; violência doméstica; invisibilidade; me-

didas de proteção; Coronavírus.

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Algumas ref‌lexões sobre

a «invisibilidade» da

violência de gênero em

tempos de pandemia Ana Lucia Sabadell

Professora Titular da Faculdade

Nacional de Direito. E-mail:

anasabadell@direito.ufrj.br

Thamires Vieira

Mestre em Direito e Advogada.

Email: thamivieira@

yahoo.com.br

1. Introdução

O trabalho que aqui se apresenta é uma homenagem póstuma

ao querido professor Roberto Bergalli. Aqui se juntam duas gerações,

influenciadas por seus ensinamentos, para apresentar uma reflexão

sobre a problemática da violência contra a mulher em tempos de

pandemia. Gostaríamos de recordar que Bergalli foi um dos poucos

professores de criminologia crítica que «acolheu», ainda a inícios

dos anos de 1990, a crítica feminista do direito. Ele não só refletiu e

publicou estudo sobre a temática, como também a incluiu em seus

cursos de máster.

492 | BRUNO AMARAL MACHADO | CEUB | COORDENADOR |

Coleção Criminologia, Direito Penal e Política Criminal

La sociología del control penal en España y Latinoamérica. Homenaje a Roberto Bergalli

GABRIEL I. ANITUA, ENCARNA BODELÓN, BRUNO A. MACHADO, MARTA MONCLÚS, IÑAKI RIVERA BEIRAS COMPILADORES

Enquanto mulheres latinas não podemos esquecer de mencio-

nar o grande comprometimento de Bergalli com nosso continente.

Apesar de todo o sofrimento que ele vivenciou durante a ditadura

militar argentina e de seu exílio, ele nunca «abandonou» a América

Latina. Basta recordar que, além de todos os estudos publicados, ele

foi responsável pela formação, desde o final dos anos de 1980, de de-

zenas de criminólogas e criminólogos da América Latina. Fica aqui

registrado nosso carinho e admiração pelo querido professor.

As feministas foram as primeiras, ainda nos anos de 1980, a

indicar a relação entre privacidade e a problemática da violência de

gênero praticada no âmbito das relações familiares1. A violência do-

méstica, já naquela década, era compreendida como um correlato

da construção histórico-social das relações desiguais entre os gêne-

ros. Em nosso modelo social (patriarcal e, portanto, heterossexual),

este tipo de violência se constituiu em um meio sistematicamente

empregado para controlar as mulheres mediante a intimidação e o

castigo, mesmo se, no senso comum, prevaleceu (e infelizmente, em

certos ambientes ainda prevalece) a ideia de que a violência domés-

tica é um fenômeno de «desvio» e isolado, que pode ser atribuído a

«patologias» do homem ou do casal2.

Entendemos que a construção desigual entre os gêneros não

afeta apenas as mulheres de orientação heterossexual. Na visão pa-

triarcal de mundo também não há espaço para a diversidade sexu-

al. Consequentemente, todos os «desvios» devem ser «castigados»,

1 DOBASH, E.; DOBASH, R. Violence Against Wifes. A Case Against Pa-

triarchy. New York: The Free Press, 1983.

2 Dentre outros estudos, Cf. EDWARDS, A. Male Violence in Feminist

Theory. In: HANMER, Jalna; Maynard, Mary (Orgs.). Women, Violence and

Social Control. Great Britain: Macmillan, 1994. pp. 13-29.; FINEMAN, Mar-

tha Albertson; MYKITIUK, Roxanne (Orgs.) The Public Nature of Private

Violence. The Discovery of Domestic Abuse. New York: Routledge, 1994.