O marco teórico

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Capítulo 1

O marco teórico

Delegata potestas non potesta delegari.

Um poder delegado não pode ser (re)delegado.

Princípio de direito administrativo

O estudo das organizações internacionais não é, obviamente, algo novo na literatura em relações internacionais. Segundo Verbeek (1998:12-14), há três grandes esforços teóricos que buscam explicar o funcionamento e influência das OIs: o funcionalismo dos anos 1960 e 1970, a escola de regimes dos anos 1980 e os estudos de governança global nos anos 1990.

O primeiro são os estudos de integração regional inspirados nos funcionalistas dos anos 1960 e 1970 (Haas, 1964). Naquele momento o objetivo era explicar a cooperação por intermédio das organizações inter-nacionais, em vez de entender seu funcionamento específico. Impulsionados pela criação da Comunidade Europeia, os primeiros funcionalistas previram que os burocratas (técnicos e experts) produziriam soluções para a comunidade global de maneira cada vez menos politizada. O que esse grupo de autores não captou foi como o interesse gerado pela burocracia poderia mudar a forma como a integração aconteceria.

O segundo esforço foi a escola de regimes e o funcionalismo dos anos 1980 (Krasner, 1983; Keohane, 1984). Os conceitos de interdepen-

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dência complexa e de regimes tomaram conta dos estudos sobre as OIs. As organizações eram apenas uma das formas de cooperação possíveis. Entretanto, centradas na forma como os regimes são criados e mantidos, estas teorias não deram conta dos efeitos das instituições sobre os Estados e da possibilidade de algumas OIs caminharem conforme seus interesses e não de acordo com os interesses dos estados. Assim, a questão do poder de ação da burocracia foi subestimada.

Por fim, o terceiro esforço trouxe abordagens mais sociológicas e amplas que incorporaram a noção de governança global (Ruggie, 1993; Young, 1994). Essas abordagens procuraram entender como algumas normas e papéis criados pelas organizações foram internalizados pelos Estados, constrangendo assim seus comportamentos. Mais uma vez não foi dada a devida atenção ao fato de que as burocracias geram interesses diferenciados que influenciam a construção de normas e o processo de internalização pelos Estados.31

31Os esforços elencados acima não foram os únicos a tentar entender o papel das OIs. Existem três importantes obras que precisam ser observadas. A primeira delas é o trabalho behaviorista seminal dos anos 1970 de Cox e Jacobson (1974:423-428). Os autores buscam entender a estrutura e os processos da influência das OIs no cenário internacional. Especificamente sobre o tema da autonomia, os autores argumentam que quanto mais importante for para os Estados a área tema da organização, menor será a autonomia da OI. Contrariamente, quanto menor a importância da área tema para os Estados menor será a autonomia. Além disso, quanto maior for o grau de tecnicidade da questão mais provável que os Estados transmitam à organização mais autonomia, por conta da vantagem comparativa das OIs nas áreas técnicas para as quais foram criadas. A noção de autonomia para Cox e Jacobson está ligada quase exclusivamente a concessões feitas pelos Estados mais poderosos. Não questionamos essa noção. Apenas argumentamos que ela não é suficiente para dar conta do fenômeno da autonomia burocrática. As estratégias dos agentes também devem ser levadas em conta. Outra obra a ser citada é a de Ernst Haas (1990:4-8). No início dos anos 1990 Haas estava preocupado com a capacidade de adaptção das OIs. Para o autor, as OIs são fundadas para resolver um problema das relações internacionais, mas a definição do que é este problema muda com o tempo e as OIs têm de se adaptar. Seu foco é a forma como o conhecimento muda o entendimento do problema. Utilizamos algumas de suas proposições em nossa pesquisa, embora seu foco esteja em outro nível de análise: as ideias e os valores. Essas variáveis são importantes, mas não respondem a tudo. Em recente e influente trabalho, Barnett e Finnemore (2004:1-44) buscam compreender o comportamento das organizações a partir de uma abordagem construtivista focada no agente. O tema central da obra é a questão da autoridade. Isto é, como as OIs adquirem autoridade e a partir dela conseguem alterar o comportamento dos Estados e, sobretudo, alcançar autonomia. A autoridade das OIs reside

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A ação estratégica da agência não era ainda um tema de pesquisa relevante.

O tema da autonomia burocrática ou mesmo estudos centrados na capacidade de ação da agência não faziam parte da agenda de pesquisa em OI até pouco tempo. Mais recentemente, alguns trabalhos em relações internacionais ligados à agenda funcionalista dos anos 1980 e 1990 que utilizam a teoria agente-principal têm feito este esforço.32No entanto, estes trabalhos pecam em alguns aspectos que precisam ser solucionados. Primeiro, é preciso ampliar o esforço de análise da autonomia burocrática trazendo à baila novos estudos sobre as burocracias nacionais. Segundo, é necessário adicionar abordagens periféricas em relações internacionais que passaram despercebidas nestes estudos mais recentes de autonomia burocrática das OIs.

Dessa forma, neste capítulo demonstramos quais as limitações dos funcionalistas tradicionais (anos 1980 e 1990) e da literatura em relações internacionais mais recente que utiliza a teoria agente-principal para en-tender as burocracias internacionais. Com isso pretendemos incrementar a agenda de pesquisa funcionalista sobre as OIs, dando ênfase à ação da agência rumo à autonomia burocrática, conceito pouco trabalhado por este grupo de autores.

Este capítulo é dividido em quatro partes. Na primeira mostramos as limitações do funcionalismo dos anos 1980 e 1990 no trato das burocracias internacionais. Na segunda discorremos sobre a teoria agente--principal. Na terceira abordamos a construção dos mecanismos de to-

na habilidade de se apresentarem como impessoais e neutras, além de não exercerem poder e sim se colocarem a serviço dos outros. O problema dos autores reside exatamente neste ponto. Há sobreposição dos conceitos de autoridade e autonomia, não ficando claro se é a autoridade que se transforma em autonomia ou se é a autonomia que constrói a autoridade. Além disso, ao criarem uma tipologia de diferentes tipos de autonomia, confundem estrutura (o arranjo institucional que abre espaço para a autonomia) com comportamento (a ação da burocracia no sentido da autonomia). Não fica claro também quando a autonomia é possível porque o arranjo institucional permite à agência agir neste sentido e se a agência efetivamente consegue executar as tarefas.

32Ver Hawkins et al. (2006); Nielson e Tierney (2003); Elsig (2009); Pollack (1997); Vaubel (2006).

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mada de decisões pelos Estados. E na quarta tratamos das estratégias do agente para evitar os controles e interferência dos principals. Nestas duas últimas partes demonstramos as limitações da literatura mais recente em relações internacionais que utiliza a teoria agente-principal para analisar as burocracias internacionais.

A cooperação internacional
e as instituições internacionais

A ideia de cooperação está sempre ligada à coordenação das policies entre Estados para resolver problemas do sistema internacional e não envolve necessariamente a criação de instituições internacionais.33,34

a construção de instituições internacionais atende a propósitos mais específicos. De acordo com Keohane (1984:87-94), as instituições são criadas para reduzir os custos de transação das barganhas legítimas — dentro das regras — e aumentar os custos das ilegítimas — fora das regras. Ato contínuo, as instituições resolvem problemas de informação assimétrica entre os Estados porque criam ambientes informacionais propícios ao aumento dos ganhos via cooperação. Além disso, favorecem a reciprocidade entre as partes, abrindo espaços para as barganhas dentro de um ambiente estável de regras, o que no limite favorece os países menos poderosos. Assim, a teoria funcionalista diz que todos os Estados estão em uma situação melhor com as instituições do que o contrário (Milner, 2005:14-26).

33O conceito de cooperação internacional é central para a literatura funcionalista. Segundo Keohane (1984:51-52), a cooperação internacional ocorre quando atores ajustam seus comportamentos de acordo com as preferências atuais ou antecipadas dos demais por meio da coordenação de suas policies.

34Para Milner (1992:469), a cooperação pode ocorrer de três maneiras. Primeiro, pode ser tácita, ou seja, o comportamento cooperativo ocorre naturalmente na medida em que as expectativas acerca dos interesses das partes convergem. Segundo, a cooperação pode ser negociada por meio de barganhas explícitas. E, terceiro, a cooperação pode ser imposta pelo ator mais forte do processo de negociação.

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A profícua bibliografia sobre regimes internacionais caminha na mesma direção. De modo geral, os regimes têm as seguintes funções: estabelecer padrões legais de credibilidade, prover informação relativamente simétrica e organizar os custos da barganha de maneira a facilitar a formação de acordos. A antecipação dos efeitos positivos das instituições faz com que os Estados facilitem a cooperação.35Assim, os efeitos das instituições internacionais sobre o comportamento dos Estados são a causa da própria existência das instituições. Os Estados as criam porque antecipam os efeitos positivos que elas provavelmente proporcionarão no futuro (Keohane, 1984, 2002; Keohane e Martin 2003).

É certo que a agenda funcionalista analisa com propriedade a questão da cooperação internacional e as razões da formação das instituições internacionais. O que essa agenda não deu conta de forma sistematizada foi o problema da...

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