Os diferentes níveis de autonomia burocrática

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Capítulo 2

Os diferentes níveis de autonomia burocrática

Once it is fully established, bureaucracy is among those social structures which are the hardest to destroy.

Gerth e Mills (1946:228)

A autonomia burocrática é uma questão de gradação. Algumas burocracias são mais autônomas que outras. Conforme já salientamos, a autonomia prevalece quando a burocracia impõe sua agenda política e transforma sua policy em uma realidade custosa para os políticos reverterem. Neste capítulo, demonstramos como os diferentes níveis de autonomia burocrática do Banco Mundial e do FMI são resultantes de uma variável decisiva: a diversificação da expertise da burocracia e, consequentemente, de sua capacidade e disposição de criar alianças com o terceiro setor.

Como vimos, nossa hipótese de pesquisa é simples. Sustentamos que variações na diversificação da expertise potencialmente afetam o nível de autonomia da burocracia. Isto é, quanto maior o nível de diversificação da expertise, maior será a possibilidade de formação de coalizões com ONGs em torno de policies de interesse da burocracia. A existência de alianças aumenta os custos de intervenção dos principals nas policies em questão e, consequentemente, aumenta-se a autonomia burocrática.

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Os burocratas das organizações financeiras internacionais

Verificamos no capítulo anterior que os níveis de autonomia também são afetados pelos mecanismos de controle à disposição dos principals. Como veremos neste capítulo, os casos estudados indicam a importância de pelo menos dois mecanismos ex post de controle razoavelmente eficientes e utilizados pelos Estados mais poderosos: o processo de recrutamento dos burocratas (screening) e a indução de terceiras partes para fiscalizar os burocratas (fire alarm oversight). O screening tem feito com que burocracias, principalmente do FMI, não precisem ser fiscalizadas constantemente pelos principals, exatamente porque suas preferências são próximas ao ponto ideal dos Estados mais poderosos. Já o uso constante do fire alarm oversight levou o Banco Mundial a realizar reformas organizacionais que, indiretamente, conduziram a uma maior autonomia burocrática.

O capítulo é dividido em três partes. Na primeira discutimos o conceito de autonomia burocrática e suas implicações para a tese. Na segunda discorremos sobre a diversificação da expertise e a criação de alianças com o terceiro setor. Por fim, discutimos possíveis variáveis omitidas que podem afetar a autonomia: a amplitude do mandato e o autofinanciamento.

A variável dependente:
o conceito de autonomia burocrática

O conceito de autonomia burocrática não é um conceito sistematizado pela literatura espcializada.55Atualmente há um debate na literatura em ciência política sobre os significados e consequências do significado da autonomia burocrática.56Ainda não há um entendimento para o conceito que possa ser utilizado realisticamente em diversos contextos históricos

55Na visão de Adcock e Collier (2001:532), alguns conceitos da ciência política são considerados “conceitos sistematizados”, ou seja, conceitos com formulação específica e clara o suficiente para serem utilizados sistematicamente por um scholar ou um grupo de scholars. Contudo, Adcock e Collier alertam para um aspecto: é importante reconhecer a limitação de um conceito e observar que há outras interpretações.

56Sobre o debate do conceito em ciência política, ver Caughey et al. (2009) e Kim (2008).

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e espaciais, contribuindo assim para o acúmulo de evidências empíricas (Caughey et al., 2009:2).57Conforme observamos no capítulo anterior, este trabalho é inspirado, de um lado, nas teorias agente-principal e, de outro, nos trabalhos que enfatizam as ações independentes do agente. Nesse sentido, nossa hipótese se localiza na intersecção destas duas correntes, tendo como base o conceito de autonomia criado por Carpenter. Além disso, como se trata de uma análise de organismos internacionais e não de uma burocracia nacional, contexto para o qual Carpenter criou o conceito, utilizamos alguns outros conceitos de relações internacionais (comuni-dade epistêmica e estratégia bumerangue) que ajudam a compreender a especificidade das OIs.58Nesse sentido, é importante lembrarmos que para Carpenter (2001a:14) a autonomia burocrática existe quando uma agência mantém padrões de ações consistentes com seus desejos, padrões estes que não são fiscalizados ou revertidos pelos políticos, interesses organizados ou cortes. Carpenter (2001a:25) argumenta ainda que uma das condições para a prevalência de autonomia burocrática é a diferenciação política (political differentiation). Isto é, as preferências da agência devem ser distintas das preferências dos demais atores (principals e ONGs) para que se possa observar a ação independente da burocracia.

57Há pelo menos três correntes distintas que utilizam o conceito em ciência política. A primeira adota as definições das teorias agente-principal. Como já observamos, esta teoria busca modelar a interação entre principals e agentes com foco nas formas de controle disponíveis aos principals. A segunda está vinculada à ideia de que o agente pode definir ou mudar as preferências dos principals. O foco desta corrente está exatamente na capacidade de ação da agência. A terceira busca entender a natureza multidimensional da autonomia burocrática por meio da análise da interação entre agências burocráticas e sistemas parlamentares europeus. Sobre as três correntes e seus principais expoentes, ver Caughey et al. (2009).

58Em relações internacionais ainda não há um debate sistemático em torno do conceito de autonomia burocrática. Apenas diferentes interpretações. Acreditamos que isto tem a ver com o fato de a literatura sobre OIs ainda estar centrada nos efeitos das organizações sobre os Estados (compliance, eficiência etc.) e mesmo na tentativa de provar a própria importância das organizações internacionais. Para diferentes interpretações nas relações internacionais, ver Hawkins et al. (2006); Lake e McCubbins (2006) e Keohane (1989).

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Neste ponto discordamos do autor. Em nossa opinião, a autonomia não acontece apenas quando a burocracia tem uma policy antagônica ou diferente dos interesses dos principals. A agência pode agir autonomamente mesmo quando há congruência de interesses e preferências com os Estados.59Do ponto de vista metodológico, identificar os momentos em que a agenda da burocracia prevalece parece mais fácil quando há discordância entre agente e principal. Mas, como autonomia tem a ver com policymaking, também é possível identificar as estratégias da burocracia na construção e condução da policy mesmo quando esta for convergente com os interesses dos principals, até porque, como veremos, é a ação da aliança estratégica burocracia-ONGs que marca a existência de uma organização autônoma nos casos estudados e não exatamente o grau de antagonismo Estados-burocracia.

Com efeito, o conceito de autonomia utilizado neste livro está ligado à capacidade da agência de mover policies de acordo com seus interesses e de evitar o controle pelos principals. Aqui, policies significam tanto os outputs da organização, ou seja, os empréstimos e suas regras relacionadas, quanto os inputs dos burocratas, ou seja, as regras concernentes a cargos, recursos financeiros e hierarquia interna de funções.60Mas como medir a autonomia burocrática? Segundo Lake e McCub-bins (2006:342), é difícil mensurar numericamente graus maiores ou menores de autonomia. Uma das razões desta dificuldade é o fato de que, se a medição de autonomia fosse precisa, os Estados a utilizariam para controlar uma burocracia recalcitrante. Assim, nossa proposta é classificar os diferentes graus a partir de tipos conceituais dentro de uma ideia simples: maior ou menor autonomia.

59Este ponto foi lembrado por Caughey e colaboradores (2009:10).

60A divisão entre outputs e inputs de autonomia burocrática vem de Verhoest e colaboradores (2004:104-106). Segundo os autores, há dois níveis de autonomia burocrática: a autonomia no nível do decision-making e a autonomia no nível das exceções aos constrangimentos do uso do decision-making pela burocracia. O primeiro tem a ver com falta de restrições ex ante ao comportamento da agência. O segundo está ligado à falta de constrangimentos ex post ao comportamento da burocracia. A falta de contrangimentos ex ante é dividida em managerial autonomy e policy autonomy, conforme utilizamos acima.

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Outro ponto relevante desta discussão tem a ver com o conceito de rent seeking.61Pode-se argumentar que a aliança burocracia-ONGs diminui a autonomia burocrática da primeira em favor do aumento de influência da segunda nos processos decisórios da OI. Com a abertura às ONGs a organização estaria cedendo parte de sua capacidade decisória a grupos de interesses que buscariam capturar a formulação das policies. Se observarmos desde um ponto de vista unilateral — ONG/burocracia —, é possível afirmar que de fato as ONGs aumentam sua influência interna com a abertura dos processos decisórios. No entanto, acreditar que há uma captura da policy por conta desse processo é exagerado. Na verdade, o ator que busca e consegue capturar as policies não são as ONGs, mas exatamente o Estado mais poderoso, os EUA. Ademais, como são inúmeras as ONGs incluídas, é muito difícil detectar a captura por um grupo de ONGs ou uma ONG em especial. Soma-a isso o fato de que o conceito de autonomia utilizado neste trabalho tem a ver com a relação principals-burocracia e não burocracia-ONGs. Neste caso, como demonstraremos nos capítulos seguintes, a autonomia da burocracia aumenta em relação aos principals exatamente por conta da inserção das ONGs no processo decisório.

A variável independente: a...

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