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Em abril de 1968, Robert McNamara, presidente do Banco Mundial, presidia uma reunião dos diretores executivos do Banco Mundial. Cada um dos 24 diretores representava países-membros da organização. Um após outro, os diretores atacaram um documento produzido pela burocracia acerca dos efeitos das desvalorizações cambiais realizadas por diversos países sobre os ativos financeiros do banco. Ao sair da reunião com semblante abatido, McNamara confessou sua mais nova convicção a William Clark, vice-presidente de relações exteriores. Segundo Clark, McNamara não gostou de debater por três horas e nada definir. Além disso, reclamou que os diretores sequer mencionaram a palavra “desenvolvimento”. Ele havia se tornado presidente para lidar com problemas de desenvolvimento e não para participar de uma sociedade de debates. Para McNamara, no futuro nenhuma outra proposta deveria ser levada ao Executive Board, instância de decisão do banco que reúne os representantes dos países, sem que tivesse sido previamente acordada pela maioria dos votantes. O presidente sabia que era seu dever prestar contas aos principais membros da organização e fazia questão de que um fluxo crescente de papers e análises preparadas pelo staff chegassem às mãos dos diretores. Mas essa atenção especial tinha um segundo objetivo: sobrecarregá-los. O objetivo era mantê-los ocupados enquanto ele administrava o banco (Kraske, 1996:205).

Em outubro de 2007, quase 40 anos depois da reunião improdutiva de McNamara, o The New York Times publicou extenso artigo acerca

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das novas responsabilidades do Banco Mundial. Liderados pelo recém-empossado presidente, Robert Zoellick, a instituição financeira administrava US$ 55 bilhões em reservas internacionais de diversos governos de renda média e baixa. Esses países adquiriam os serviços financeiros do banco porque a instituição cobrava baixas taxas administrativas e tinha reputada confiança. Imediatamente, os críticos de esquerda apontaram: como um banco construído para lutar contra a pobreza começou a administrar reservas internacionais e ativos dos países receptores de seus empréstimos? A direita não deixou por menos: com taxas tão baixas era impossível os bancos comerciais competirem com o Banco Mundial na administração dos recursos.7É certo que não houve debates acalorados a respeito das novas responsabilidades do banco no Executive Board. Pelo contrário, houve apoio total.

Em junho de 1992, o governo dos EUA começou a pressionar o alto escalão do Fundo Monetário Internacional (FMI) para aprovar um empréstimo multibilionário à Rússia de Boris Yeltsin, sob o argumento de que se os recursos não chegassem logo a Moscou as reformas pró-mercado iniciadas pelo novo presidente estariam ameaçadas. A alta cúpula burocrática do fundo também desejava realizar o empréstimo, porém exigia condicionalidades tidas como inaceitáveis por Moscou, tais como reduzir o déficit público a zero e liberalizar os controles sobre os preços do petróleo. A administração estadunidense estava preocupada com a posição dos economistas linha-dura do fundo e com a possibilidade de o empréstimo não acontecer. A Casa Branca começou a exigir mudanças nos termos do acordo com o objetivo de facilitar a aceitação por Moscou, a despeito da resistência dos burocratas.8No mês seguinte um pequeno empréstimo de US$ 1 bilhão foi anunciado, seguido por uma declaração de apenas um parágrafo assinada por Michael Camdessus, diretor-geral do FMI, e Yegor T. Gaidar, primeiro-ministro russo. A sucinta declaração falou

7“The World Bank, the little-noticed big money manager”, NYT, 17-10-2009.

8“U.S. backs easier terms for Russian aid”, NYT, 19-6-1992; “Russia and I.M.F. fail at an accord”, NYT, 20-6-1992; “I.M.F. hopes to lend Russians a quick $1 billion”, NYT, 25-6-1992.

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vagamente de novas medidas pró-mercado, limite de gastos e reformas liberais que Moscou deveria tomar dali em diante. Um pouco antes da reunião, o presidente Yeltsin declarou à imprensa que as exigências do fundo foram dirimidas porque a Rússia era um país único e suas reformas eram únicas. Nos próximos seis meses um acordo multibilionário seria renegociado gradativamente, mas a administração de George Bush declarou estar satisfeita com o acordo encontrado entre as partes.9Qual é o maior contraste entre os dois casos? Como o alto escalão do Banco Mundial conseguiu transformar o banco em administrador das reservas internacionais de diversos países, algo muito diferente daquilo para o qual havia sido criado há 50 anos, ao passo que o FMI ainda se vê às voltas com a forte interferência dos EUA em seus assuntos? Como esta diferença é possível se ambas as organizações foram fundadas no mesmo espírito do pós-guerra e com estruturas de governança semelhantes? Este trabalho pretende dar respostas a estas perguntas.

A autonomia burocrática das organizações internacionais

A ideia de autonomia burocrática das organizações internacionais (OIs) está geralmente ligada à discussão acerca de seu papel na ordem global. Há um intenso debate sobre as formas como as OIs exercem influência nas relações internacionais. Alguns trabalhos classificam as OIs como atores pouco relevantes ou meros epifenômenos do cenário global (Mearsheimer, 1995; Grieco, 1988; Waltz, 2002). Outros afirmam que as organizações são atores importantes, porém ainda dependentes dos interesses e poder dos Estados.10Há aqueles que procuram entender como elas funcionam e exercem influência, mas não atentam para o fato de que algumas delas podem ser compreendidas como atores internacionais autônomos (Haas, 1964). Certos estudos veem as organizações internacionais como atores relativamente autônomos, porém sustentam que isso ocorre apenas pela

9“I.M.F. and Russia reach accord on loan aid and spending limits”, NYT, 6-7-1992.

10Keohane (1984); Axelrod e Keohane (1985); Cox e Jacobson (1974).

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via cognitiva — as organizações internacionais redefinem os significados das normas e legitimam ações — e não dão conta dos interesses e poder material das OIs (Barnett e Finnemore, 1999, 2004.). Por fim, alguns autores até levam em consideração a ideia de autonomia, porém não a analisam de maneira comparada.11Tendo em vista as diferentes abordagens, nosso trabalho tem como objetivo geral preencher uma lacuna da literatura de relações internacionais, qual seja, compreender por que algumas organizações internacionais podem ser entendidas como atores autônomos e outras não.

Mas o que significa ser uma organização internacional autônoma? Em nossa abordagem, significa ter autonomia burocrática. A autonomia burocrática prevalece quando a burocracia faz valer sua agenda política e transforma a policy de seu interesse em uma realidade custosa para os políticos reverterem.12Isto é, as estratégias e ações da burocracia mudam o status quo de tal maneira que os Estados têm dificuldades para alterá-lo, pois os custos políticos para a mudança são muito altos.

É certo que nem todas as OIs possuem autonomia burocrática. Como observamos nos exemplos colocados anteriormente, algumas organizações conseguem alcançar certo grau de autonomia a partir do qual os Estados se tornam reativos à agenda colocada pela alta burocracia, ao passo que outras sofrem com a interferência decisiva dos Estados em suas atividades diárias. Como veremos adiante, a chave explicativa desta diferença reside no grau de diversificação da expertise da OI.

11Lake e Mccubbins (2006); Barnett e Coleman (2005); Reinalda e Verbeek (1998, 2004); Reinalda (1998).

12Esta definição derivou de Carpenter. Contudo, o autor tem uma definição mais ampla para o fenômeno. Segundo Carpenter, autonomia burocrática é a capacidade de os burocratas construírem policies de acordo com seus interesses e que se tornam custosas para os políticos (Estados) reverterem. A autonomia prevalece quando a burocracia estabelece legitimidade política para suas ações — fruto de uma reputação baseada na expertise, na eficiência e em uma rede de contatos com o terceiro setor (ONGs e grupos de interesse). Essa legitimidade induz os políticos a aceitarem as propostas das organizações mesmo quando se sentem contrariados. Carpenter (2001a:4-5 e 14-15). Faremos uma discussão mais aprofundada do conceito no capítulo 2.

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A abordagem de pesquisa

Como selecionar os casos de estudo? Entre as inúmeras organizações internacionais existentes quais são aquelas que poderiam trazer mais indícios de autonomia burocrática e quais são as menos autônomas? Uma forma de analisar o problema seria selecionar uma ampla amostra de casos a fim de encontrar maior...

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