O processo de revisão da sentença perante a Corte Internacional de Justiça à luz de suas últimas decisões (Iugoslávia vs. Bosnia e El Salvador vs. Honduras)

AuthorLeonardo Nemer Caldeira Brant
PositionEx-Consultor Juridico da Corte Internacional de Juridiça, Presidente do Centro de Direito Internacional - CEDIN, Professor de Direito Internacional da Faculdade de Direito da UFMG
Pages132-150

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A resposta da Corte Internacional de Justiça (C.I.J.) tanto à demanda de revisão da sentença de 11 de julho de 1996 no Caso Relativo à Aplicação da Convenção para a Prevenção e Repressão do Crime de Genocídio2, quanto à demanda de revisão da sentença de 11 de setembro de 1992 no Caso da Diferença Fronteiriça Terrestre, Insular e Marítima3 demonstra claramente que a revisão jurisdicional junto à C.I.J. repousa sobre bases frágeis e permanece com caráter excepcional.

De fato, apesar das suas origens antigas4 e seu vasto acolhimento pelo direito internacional5, o procedimento de revisão previsto no artigo 61 do Estatuto da Corte internacional de Justiça não obteve grande sucesso. Nesse sentido, a demanda de revisão e interpretação da sentença da C.IJ. de 24 de fevereiro de 1982 no Caso cia Plataforma Continental (Tunísia/Líbia)6 correspondeu à primeira vez em que a C.IJ. se pronunciou a este respeito.7 Nesta ocasião, por unanimidade, declarou a demanda inadmissível8. Este episódio e suas hesitações em reconhecer e pôr emPage 133prática o instituto da revisão testemunham, portanto, certa desconfiança a respeito de seu uso. As razões para tal não são óbvias,

É inegável que o processo de revisão pode ser entendido politicamente como um instrumento para a flexibilização da imutabilidade da decisão jurisdicional. Fundada na descoberta de um fato novo e decisivo, desconhecido por todos no momento do proferimento da sentença, o procedimento de revisão constitui contestação da autoridade da coisa julgada. Isto se dá na medida em que tal procedimento pode, efetivamente, levar à modificação do material do conteúdo dispositivo da decisão original9 Esta possibilidade significa que a revisão enfraquece a res judicata ao reiativizar seus aspectos positivos e negativos diante de uma suposta necessidade social de boa administração da justiça.

Compreendem-se, assim, as reticências intencionais da C.IJ.. Esta tem privilegiado a preservação da segurança jurídica para garantir a não continuidade da controvérsia. Como afirma D,W, Bowett, 'the respect which States show for awards would be undermined if the awards lacked finality and binding force10 Esta consideração fundamental traduz-se pela impossibilidade jurídica e social de se questionar novamente os pontos já decididos de forma definitiva e irrevogável11 pela Corte. O efeito obrigatório e definitivo da sentença é um princípio, assim, universalmente reconhecido12.

No entanto, a própria existência da possibilidade processual de revisão da sentença nos leva a concluir que 'um julgamento definitivo não é um julgamento irrevogável'.13 A necessidade de segurança jurídica deve ser atenuada e equilibrada pelas considerações elementares cia administração da boa justiça14. Essas considerações opostas conduzem à dificuldade de identificar a ligação entre o princípio da autoridade da coisa julgada e a necessidade de flexibilidade própria ao processo de revisão da decisão jurisdicional. Em outros termos, diante desta tensão, levanta-se a questão de saber qual é o alcance da revisão jurisdicional face a uma decisão obrigatória e definitiva,

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Neste contexto, frente à necessidade de se assegurar um mínimo de segurança jurídica, o instítutoda revisão está subordinada a determinadas exigências e critérios. Esta deve, inicialmente, ser fundada na existência de fato novo desconhecido (do tribunal e da parte demandante) no momento da decisão jurisdicional. Exige-se, ainda, que tal fato pudesse ter conduzido a uma sentença materialmente distinta daquela originalmente proferida. Não basta a mera existência do fato novo. É também necessário que este seja relevante o bastante para potencialmente modificar o pronunciamento jurisdicional. Por fim, o fato em questão deve ter ocorrido antes da sentença, mesmo que sua descoberta seja a ela posterior,15

Ao Jado das considerações acerca do que se entende por "fato novo", o artigo 61 do Estatuto da Corte estabelece condições rígidas de admissibilidade. Enumeradas de maneira cumulativa, estas condições levam a que a revisão de uma sentença só ocorra na medida estrita do alcance do fato novo. Assim, os pontos da sentença que não sejam afetados pelo fato em questão não são susceptíveis de constituir objeto de revisão.

Confrontada com estas questões nos casos da demanda de revisão da sentença de 11 de julho de 1996 no Caso Relativo à Aplicação da Convenção para a Prevenção e Repressão do Crime de Genocídio(I) e no caso da demanda de revisão da sentença de 11 de setembro de 1992, no Caso da Diferença Fronteiriça Terrestre, Insular e Marítima (II), a Corte manteve os princípios estabelecidos em seu Estatuto e Regulamento, fornecendo indicações úteis quanto aos limites de seu poder de revisar suas próprias sentenças.

I-A admissibilidade da demanda de revisãod a sentença de 11 de julho de 1996 (República Federal da Iugoslávia vs Bosnia-Herzegovina)

A sentença de 11 de julho de 1996 no Caso Relativo à Aplicação da Convenção para a Prevenção e a Repressão do Crime de Genocídio teve por objeto as exceções preliminares levantadas pela Jugoslávia em oposição a um requerimento da Bósnía-Herzegovina fundamentado no artigo IX da Convenção sobre o Genocídio. Nessa decisão, a Corte concluiu que era competente para apreciar o caso. Sua competência ratíone personae em relação à Iugoslávia apoiou-se no artigo IX da referida Convenção16. Segundo a Corte, "a demanda introduzida perante a Corte opõe dois Estados cujos territórios se situam interior da ex-Republica Federal Socialista da Jugoslavia. Esta assinou a Convenção sobre o no interior da ex-República FederalPage 135Socialista da Iugoslávia. Esta assinou a Convenção sobre Genocídio de 11 de dezembro de 1948 e depositou seu instrumento de ratificação, sem reservas, em 29 de agosto de 1950. Desde a proclamação da República Federal da lugoslávia, em 27 de abril de 1992, uma declaração formal foi adotada em seu nome."17

Esta argumentação levou a Corte a concluir que "a intenção assim expressa pela Iugoslávia de permanecer vinculada aos tratados internacionais dos quais fazia parte a ex-Iugoslávia foi confirmada numa nota oficial de 27 de abril de 1992 dirigida ao Secretário Geral da missão permanente da Iugoslávia junto às Nações Unidas."18 Por outro lado, "não se contestou que a lugoslávia fizesse parte da Convenção sobre o Genocídio."19 Assim, para a Corte, "a Iugoslávia estava vinculada às disposições da Convenção na data da entrega da petição no presente caso, em 20 de março de 1993"20

Diante da posição da Corte, a República Federal da iugoslávia (R.F.I.), em 24 de abril de 2001, apresentou uma demanda na qual solicitava à Corte a revisão da sentença proferida em 11 de julho de 1996. Seu argumento residia no fato de a competência da Corte ter repousado sobre o artigo IX da Convenção sobre o Genocídio, inicialmente, alegou que somente poderia ter-se tornado parte na Convenção por via de sucessão automática ou mediante formalidades de ordem convencional (notificação de sucessão ou notificação de adesão) as quais, no entanto, nâo tinha efetuado.21 A R.E.I. concluí que a Corte a considerou vinculada ao artigo IX da Convenção sobre o Genocídio, em razão de urna nota de 27 de abril de 1992, na qual a lugoslávia assegurava a continuidade do Estado e da personalidade jurídica e política internacional da R.S.E.I.22 Como assinalou M. Varady, Agente da R.F.I., a declaração e a nota repousavam inteiramente sobre um postulado, segundo o qual a R.F.I. permanecia como membro das organizações internacionais (entrePage 136elas a O.N.U) e como Estado-parte de antigos tratados, conservando, portanto, a personalidade jurídica da ex-Iugoslávia23

Para contestar essaconcrusão, a R.F.I. sustentou que sua admissão na Organização das Nações Unidas, em 1o de novembro de 2000, como novo Estado Membro constituiu fato novo capaz de exercer influência decisiva sobre a competência ratione personae da Corte. Alegou ainda que o fato era desconhecido quando do proferimento da sentença em 11 de julho de 1996. Na realidade, a R.F.L salientou a existência de urna contradição entre a sentença de 11 de julho de 1996, segundo a qual a R.F.I. permanecia vinculada ao artigo IX da Convenção sobre o Genocídio ratificada pela ex-Iugoslávia em 1950, e a admissão da R.RI. na qualidade de novo membro da Organização das Nações Unidas em 1o de novembro de 2000. Deste modo, essa situação responderia às condições postas no artigo 61 do Estatuto da Corte para a revisão.

Para a R.F.I., sua admissão nas Nações Unidas como novo membro e o depósito, em 8 de março de 2001, do instrumento de adesão à Convenção sobre o Genocídio, acompanhado de uma reserva ao artigo IX, seriam indícios de que esse Estado não assegurava a continuidade da personalidade jurídica da ex-Iugoslávia. Logo, no momento em que a sentença de 11 de julho de 1996 foi proferida, esse Estado não fazia parte do Estatuto e, portanto, não estava submetido ao artigo IX da Convenção.24

Desta forma, são três os principais motivos invocados pela R.El. para justificar sua demanda:

- Em primeiro lugar, o demandante sustentou que "a R.F.I, não era membro da Organização das Nações Unidas em 20 de março de 1993, quando o requerimento da Republica da Bosnia-Herzegovina foi apresentado, e não o tinha sido antes de 11 de julho de 1996, quando a sentença foi proferida"

- Em segundo lugar, segundo a R.El., este "não era um Estado parte do Estatuto da Corte em 20 de março de 1993 e nunca o fora antes de 11 de julho de 1996, quando a sentença foi proferida";

- Finalmente, o demandante considera que "a R.F.I. não era parte contratante na Convenção para...

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