Usuários e dependentes na nova lei de drogas: descriminalização, transação penal e retroatividade benéfica

AuthorVladimir Brega Filho; Marcelo Gonçalves Saliba

Vladimir BREGA FILHO 1 MARCELO Gonçalves SALIBA 2

I INTRODUÇÃO

Não é de hoje que as drogas vêm causando sérios problemas à humanidade. Nelson Hungria relata que o aumento do consumo de drogas na Europa ocorreu após a primeira Grande Guerra, fruto das lembranças tétricas, das desventuras cruéis, do ódio e das ilusões desfeitas 3. De lá para cá, o consumo de drogas só aumentou. Além do aumento do consumo das já existentes (cocaína, ópio, haxixe, maconha etc), surgiram as drogas sintéticas,

feitas em laboratório, igualmente danosas ao ser humano. Tudo isso exige a busca de soluções para impedir o contínuo aumento do seu uso.

Nesse caminho, a lei 11.343, de 23 de agosto de 2006, tenta aperfeiçoar o combate ao tráfico ilícito de entorpecentes, reprimindo mais severamente condutas criminosas e especificando, em novas figuras típicas, o comportamento humano proibido, bem como apresentando um novo tratamento penal aos usuários e dependentes de drogas.

O paradigma agora, em relação aos usuários e dependentes, está calcado na prevenção e reinserção social, tanto que a sanção privativa de liberdade e pecuniária foram abolidas. É uma reinvidicação histórica de diversos grupos representativos da sociedade, que encontra amparo no princípio da mínima intervenção e dignidade da pessoa humana. E, amparada nesses princípios norteadores, a nova lei, em sua parte geral, alterou regras de tratamento, definições, competências e atribuições, disciplinando melhor a questão relativa aos usuários e dependentes.

A novatio legis deu nova definição ao Sistema Nacional de Prevenção, Fiscalização e Repressão, que passou a denominar-se Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas (Sisnad), previsto no artigo 3o, e apontou como sua finalidade articular, integrar, organizar e coordenar as atividades relacionadas à prevenção do uso indevido, à atenção e à reinserção social de usuários e dependentes de drogas. O título II é todo dedicado ao Sisnad, encontrando-se no artigo 4o um rol de princípios, destacando-se dois incisos: I. o respeito aos direitos fundamentais da pessoa humana, especialmente quanto à sua autonomia e à sua liberdade; III. a promoção dos valores éticos, culturais e de cidadania do povo brasileiro, reconhecendo-os como fatores de proteção para o uso indevido de drogas e outros comportamentos correlacionados.

O artigo 5o indica os objetivos do Sisnad, entre eles o de contribuir para a inclusão social do cidadão, visando a torná-lo menos vulnerável a assumir comportamentos de risco para o uso indevido de drogas, seu tráfico ilícito e outros comportamentos correlacionados (inciso I).

O Título III aborda as atividades de prevenção ao uso indevido, de atenção e de reinserção social de usuários e dependentes de drogas. No capítulo I, aborda especificamente as atividades de prevenção e seus princípios,

enquanto, no capítulo II, discorre sobre as atividades de atenção e de reinserção social de usuários ou dependentes de drogas. A linha mestra no trabalho de prevenção e reinserção social está sedimentada numa atuação compartilhada de responsabilidade e colaboração mútua entre os entes públicos e privados, estes com ou sem fim lucrativo.

Vale ressaltar que não se vislumbra um trabalho de prevenção e reinserção sem a colaboração direta das comunidades afetadas. O envolvimento agora não se resumirá ao disque-denúncia, mas se estenderá para o comprometimento e solução do problema social. Isso representa significativo avanço em relação ao sistema anterior, que se baseia na tradicional justiça penal punitiva, impositiva e verticalizada.

Os diversos dispositivos inseridos nos capítulos I e II, do título III, determinam uma interpretação, amparada na vontade do legislador, no respeito aos direitos fundamentais da pessoa humana, especialmente quanto à sua autonomia e à sua liberdade, buscando uma nova "censura" aos usuários e dependentes de entorpecentes que não aquela tradicional sancionatória. Textualmente, observa-se que não há mais espaço para a punição pura e simples, pois, agora, acima da resposta penal, está a prevenção e a reinserção social. Isso levou alguns a afirmar que houve uma descriminalização na nova lei de entorpecentes, inclusive com afirmativas de que somente não houve uma integral descriminalização da figura em razão do momento político4 pelo qual passava o país na data da votação e promulgação.

Num caminho lógico, decorrente da exposição feita nos capítulos precedentes, a nova lei de tóxicos dispensa um tratamento diferenciado aos usuários e dependentes de entorpecentes. Os operadores do direito devem determinar sua atuação de acordo com os princípios da nova lei, observando, sempre, o interesse maior de recuperação e reinserção do usuário ou dependente o que não deixa de ser, indiretamente, um combate ao tráfico de drogas.

Em suma, toda interpretação da nova lei deve ter por base os princípios e regras acima indicadas e, dentro dessa linha, nossa atividade passa a ser orientada pelos princípios e objetivos da nova lei.

II DROGAS PARA USO PRÓPRIO E A NOVA LEI DE TÓXICOS

O crime anteriormente definido no artigo 16 da Lei 6.368, de 21 de outubro de 1976, não foi abolido pela nova lei, existindo nova figura típica para os usuários e dependentes de entorpecentes. A nova figura está descrita no artigo 28 e tem a seguinte redação:

"Quem adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo, para consumo pessoal, drogas sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar será submetido às seguintes penas."

Alguns doutrinadores vêm discutindo e afirmando que houve descriminalização com a nova lei, sob o fundamento de que, não mais havendo pena privativa de liberdade, reclusiva ou detentiva, inexiste crime e, inexistindo prisão simples ou multa, inexiste contravenção penal 5. Até já se acena com uma nova classificação doutrinária - infração sui generis. A discussão se há ou não crime não é ontológica, pois inexiste diferenciação nesse ponto, mas é extrínseca e legal, com maior interesse ao meio acadêmico 6 , todavia com inegável repercussão prática.

A doutrina tradicional sedimentou o entendimento de que, no Brasil, nossa legislação adotou o critério bipartido para os delitos, ou seja, há crimes e contravenções, inexistindo outra espécie. Ao prever somente sanção restritiva de direitos e eliminar a privativa de liberdade e pecuniária, a nova lei afastou-se daquelas espécies legalmente definidas e criou uma nova. A nova espécie encontra-se ainda dentro do gênero delito ou infração penal, vez que há pena e regramento pelo Direito penal, todavia a nova classificação agora é infração sui

generis. Essa é a posição defendida por Luiz Flávio Gomes quando sustenta a existência dessa nova classificação 7.

A adoção dessa posição legalista gera inúmeras repercussões. Se, ao pé da letra, crime não há, a condenação anterior pelo artigo 28 não pode ensejar a reincidência, que exige condenação por crime. Não há ato infracional na conduta do adolescente flagrado na posse de entorpecente para consumo, já que o artigo 103 diz que constitui ato infracional a prática de crime ou contravenção penal. A condenação não mais é hipótese de revogação da suspensão condicional da pena e do livramento condicional, pois ambos exigem condenação por crime.

Esse entendimento apega-se ao legalismo para definir crime e contravenção e afirmar pela incompatibilidade do novo tipo com essas definições. Essa interpretação se mostra limitada, já que baseada exclusivamente no texto legal.

A repressão da conduta do usuário e dependente continua sendo a razão da movimentação do sistema penal como um todo, ou seja, atuação policial, procedimento investigatório criminal e ação penal perante a justiça penal. O novo tipo penal está fundamentado num novo modelo de justiça penal, terapêutica ou restauradora e substituiu a pena por uma "censura" o que não afasta a espécie crime num conceito material.

Há, difundidos pela doutrina nacional, três conceitos de crime: 1) conceito formal: "crime é toda ação ou omissão proibida pela lei, sob ameaça de pena"; 2) conceito material: "é o crime um desvalor da vida social"; 3) conceito analítico: "ação ou omissão típica, antijurídica e culpável" 8.

Trabalhamos com o conceito material, sendo nossa linha doutrinária e conceitual influenciada pelo professor Eliezer Gomes da Silva que apresenta o seguinte conceito de crime, amparado numa concepção dos direitos humanos como objeto de limite do direito penal: "crime é toda conduta contrária ao

humanamente exigível, a significar um interesse, cuja lesão ou perigo de lesão autoriza uma censura ou uma sanção estatal direcionada a seu autor" 9.

A resposta do direito penal para se classificar a conduta como crime ou não, não se limita à pena prevista em abstrato, mas ao determinante fato de autorizar e "legitimar" a intervenção do sistema penal. A "censura" ou "sanção" não é unicamente privativa da liberdade. A lei de introdução ao Código Penal é da década de 40, Decreto-Lei 3.914/41, e está sujeita a todas as regras e princípios referentes à legislação ordinária, inclusive com possibilidade de não recepção pela nova ordem constitucional e revogação ou derrogação por novas leis. Com o surgimento de um novo tipo penal, com previsão unicamente de pena restritiva de direitos, o legislador derrogou, tacitamente, aquele tradicional conceito de crime, ampliando-o.

Firmado o posicionamento da existência do crime, não se pode admitir a tese da descriminalização, compreendendo essa, conforme Cervini, como "sinônimo de retirar formalmente ou de fato do âmbito do Direito penal certas condutas, não graves, que deixam de ser delitivas"10, em três formas possíveis:

"a) a descriminalização formal, de jure ou em sentido...

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