A Diretiva 2001/18 CE como medida sanitária e fitossanitária - apontamentos sobre a decisão do Grupo Especial da OMC no Biotech Products case

AuthorRoberta Jardim de Morais
PositionAdvogada, Mestre em Direito Económico -UFMG, Doutoranda em Ciências Jurídico-Económicas -Universidade de Coimbra
Pages202-222

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A contextualização da problemática

Em1 maio de 2003 os Estados Unidos, o Canadá e a Argentina apresentaram, no âmbito do sistema de solução de controvérsias da OMC, pedido de consulta (em separado) às Comunidades Européias3 relativamente as medidas a seguir nomeadas que afetatavam o comércio dos produtos (cultivares) desenvolvidos através da técnica do DNA recombinante (biotech products)4: (a) A moratória geral a respeito da aprovação dos biotech products (general EC moratorium); (b) As medidas comunitárias relativas a produtos específicos e que afetam a aprovação de produtos biotecnológicos específicos (product-specific EC measures) e (c) várias medidas de salvaguarda adotadas pelos Estados Membros proibindo a importação e a comercialização de produtos biotecnológicos específicos.5 Considerando que nenhum acordo foi alcançado entre as partes, aos 29 de agosto de 2003, o órgão de Solução de Controvérsias determinou a formação de um único Panel com o objetlvo de dirimir as questões apresentadas individualmente por cada um dos países mencionados. A disputa centrou-se em dois problemas distintos: (i) o funcionamento e a aplicação do sistema europeu de biossegurança que tem como núcleo duro o regime de aprovação prévia dos produtos desenvolvidos a partir da biotecnologia moderna e; (ii) as medidas adotadas por alguns Estados Membros, de maneira isolada, proibindo ou restringindo a comercialização de tais produtos.

As Partes alegaram que diversas disposições do Direito da OMC estariam sendo ofendidas pelas medidas comunitárias e pelas medidas individuais dos EstadosPage 203Membros.6 Contudo, buscaremos nos concentrar somentes nas discussões em torno do Acordo sobre a aplicação de medidas sanitárias e fitossanitárias e mais especificamente na análise da compatibilidade (ou não) das medidas comunitárias de suspensão e atraso no exame dos pedidos de aprovação dos organismos geneticamente modificados, com as normas do referido tratado.

O processo foi marcado por discussões preliminares sobre a identificação da medida em causa e, também por considerações processuais bastante relevantes apresentadas pelos membros do Grupo Especial a respeito: (i) da apresentação pelas partes demandantes de três pedidos separados; (ii) da aceitação de pareceres não solicitados (amicus curiae briefs); (iii) da decisão de consultar e solicitar a contribuição, tanto de experts independentes como de organizações internacionais especializadas; e ainda (iv) da aplicação de normas internacionais firmadas fora do âmbito da organização mundial do comércio. As questões materiais, por sua vez, centraram-se no exame da adequação das medidas adotadas pelas Comunidades Européias e seus Estados Membros,7 com o direito da OMC, Cada um dos pontos mencionados acima merece uma análise acurada e minuciosa e foi por essa razão, que resolvemos delimitar, de maneira clara, aquele que será objeto de estudo no presente artigo, A análise que se pretende realizar tem como foco a medida comunitária relativa à suspensão dos procedimentos de aprovação dos biotech products, bem como do atraso no exame dos processos de aprovação já em andamento, ou seja, da "moratória de facto" (geral) relativa aos produtos transgênicos e mais especificamente sua caracterização ou não medida sanitária ou fitossanitária. Ressalte-se, que não serão analisadas no presente artigo, nem as medidas unilaterais dos Estados, nem tampouco a moratórias comunitária relativas à produtos específicos.

Em razão da complexidade, tanto jurídica, quanto científica que envolve a temática subdiviremos o artigo nos seguintes sub - items a saber8; (a) A caracterização da moratória de fato como uma medida nos termos do artigo 6.2 do DSU; (b) O enquadramento das normas de biossegurança como medidas sanitárias e fitossanitãrias e, finalmente (c) o exame da inconsistência da moratória de facto com algumas disposições do Acordo sobre a Aplicação das Medidas Sanitárias e Fitossanitãrias.

I A caracterização da moratória (geral) de facto como uma challengeable measure

De acordo com as Comunidades Européias as partes demandantes foram incapazes de demonstrar, com objetividade, qual (ais) medida (as) estariam sendo questionadas, fato que impediria a adequada condução dos trabalhos podendo comprometer o próprio Panel9 O órgão de solução de controvérsias, contudo,Page 204entendeu que as medidas em causa, quais sejam, (i) a suspensão do exame pelas Comunidades Européias dos requerimentos de aprovação apresentados e (ii) o atraso no exame dos processos já em andamento; foram claramente especificadas, afirmando que não seria imprescindível que as "medidas" adotasssem a forma de fontes primárias ou secundárias do direito comunitário, para que fossem consideradas "medidas Válidas e legítimas no âmbito da Organização Mundial do Comércio.

A exigência de se identificar a medida que ofende o direito cia OMC e que embasa o Pedido de Consulta está disposta no artigo 6.2. do "Entendimento sobre Regras e Procedimentos que regem a Solução de Controvérsias"- DSUJ10 A referida exigência já foi objeto de interpretação pelo sistema de solução de controvérsias em diversas oportunidades,11 tendo sido inclusive, objeto de exame na recente decisão proferida no caso Canada - Measures relating to exports of wheat and treatment of imported grain. Esse Grupo Especial afirmou que identificar a medida em questão, significa estabelecer a identidade de tal medida,12

Um ato (medida) pode ser caracterizado tanto como uma ação quanto como uma omissão, tanto como o fazer, como com o deixar de fazer, A suspensão de um procedimento, mesmo que não seja determinada por uma ato legislativo, administrativo ou judicial, não deixa de ser uma ação que gera efeitos tanto para as partes envolvidas como para terceiros. As medidas governamentais podem ser formais (de iure) ou informais (de facto). A natureza informal (de facto) da medida não deve ser um fator passível de afetar o grau de precisão da medida, Impeditivo a instauração do panel e prejudicial ao direito das partes afetadas. De acordo com o dicionário Houaiss a expressão de facto remete a fato, realidade, existência e é ela,Page 205que qualifica a moratória, ou seja, o núcleo de toda essa disputa. A interpretação literal do termo moratória remete a adiamento ou suspensão deliberada13. Este ato, apesar de não configurar-se como um ato jurídico propriamente dito, afronta uma norma jurídica e, portanto, não deixa de ser caracterizado ato jurídico em sentido lato. A moratória é algo que se prende a vontade das Comunidades Européias, e em relação a qual o Direito OMC14 confere consequências jurídicas.

No caso US - Carbon Steel o órgão de apelação afirmou que poderia ser considerada uma medida contestável (challengeable measure) qualquer ato ou omissão atribuída a um Estado Membro da OMC". Nessa esteira, o Grupo Especial, no caso em exame, considerou que a expressão "qualquer ato ou omissão"poderia englobar tanto as medidas de facto quanto as medidas de jure, Acrescentanto ainda, que se as medidas de facto não fossem consideradas medidas, elas poderiam ser utilizadas como forma de burlar o Direito da OMC.15

A falta de transparência da suspensão comunitária não poderia ser utilizada em seu benefício, como justificativa à falta de clareza a respeito da medida em causa, que por ter sido informal, não tinha status jurídico definido,16 As Comunidades Européias aplicaram uma moratória de facto relativamente a aprovação dos biotech products desde outubro de 1998, Essa moratória conduziu à suspensão e à interrupção da análise e avaliação de novos requerimentos e ao atraso na finalização daqueles que estavam em andamento. A moratória é, portanto, a ação (omissão) que constitui a conduta que implicou descumprimento das obrigações previstas no direito da OMC.17

A moratória comunitária foi abordada publicamente em diversas oportunidades inclusive, pelos Comissários Walístrôm18 e Byrne19 que a consideravam ilegal e desprovida de embasamento cinentífico. As Comunidades Europeias durante a moratória simplesmente evitaram tomar decisões sobre a liberação de diversos organismos geneticamente modificados. Alguns documentos comunitários também confirmam a existência de tal medida suspensiva,20 Em julho de 2003 a Comissão ao manifestar-se sobre as novas regulações dos OGMs afirmou que a estas abriam caminho para retomada dos processos de avaliação dos OGMs no âmbito da União Europeia, demonstrando assim, que tal prática havia sido suspensa. UmPage 206outro documento divulgado pela Secretaria Geral do Conselho da União Européia dispunha que os projetos das novas normas de rastreabilidade e rotulagem dos produtos geneticamente modificados poderiam por um fim na moratória. Mais recentemente, em 2004 em uma de suas Comunicações a Comissão admitiu que nenhuma autorização havia sido concedida desde 1998.

Dessa feita, não há que se falar em medida não identificada e tampouco em medida não contestável Resta claro que a moratória de facto é uma medida que afeta direitos e obrigações previsto no âmbito da OMC e encontra-se em estrita conformidade com as exigências do artigo 6.2.

II A Diretiva 18/ 2001CE como medida sanitária e fitossanitária

O arcabouço comunitário...

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