As Cortes Domésticas e a Aplicação do Direito Internacional Público

AuthorGabriela Frazão Gribel
PositionMestre em Direito Internacional Público pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais; Coordenadora do Centro de Direito Internacional - CEDIN
Pages170-203
170 VI ANUÁRIO BRASILEIRO DE DIREITO INTERNACIONAL | V. 1
As Cortes Domésticas e a Aplicação do Direito Internacional Público
gAbrielA FrAzão gribel
1
Resumo
O Direito Internacional tem, nos últimos anos, sido cada vez mais utilizado
como forma de regulamentação de comportamentos internacionais. Por essa razão,
sua eficácia tem sido fortemente questionada, ao mesmo tempo em que diferentes
mecanismos para garantia do seu cumprimento têm sido utilizados. Adicionalmente,
tem-se verificado uma aproximação constant e entre as esferas normativas doméstica
e Internacional, o que faz com que se torne tarefa difícil a delimitação de fronteiras
exatas entre essas duas esferas normativas. Diante deste contexto, não se pode negar
que cabe às cortes internas, em várias circunstâncias, a discussão e interpretação
dos diplomas normativos internacionais. O objetivo deste trabalho é, portanto, o de
compreender em que medida o judiciário nacional se coloca como um instrumento de
garantia do cumprimento do Direito Internacional, e de que forma ele pode reforçá-lo
ou desafiá-lo.
Palavra s chave: Direit o Internaciona l, Judicializa ção, Cortes e Tribun ais,
Direito Interno , Cortes Domésti cas, Efi cácia, I mplementação do Direito
Interna cional.
ABSTRACT
Interna tional law has, in re cent years, been increasingl y use d as a form of
regulat ion of internati onal behavior. There fore, its effecti veness has been str ongly
questio ned, while different mechanisms to ensure its comp liance have been
used. Additi onally, there has been a const ant approach betwe en the domestic
and internation al regulat ion spher es, which means that it becomes difficult
to delimitat e exa ctly the b orders between these two normati ve sp heres. Given
this cont ext, one can not den y that it behooves dom estic courts, in va rious
circums tances, to discus s and interpret int ernational norm ative acts. The obje ctive
of thi s thesis is therefore to understa nd the exte nt to which the natio nal judiciar y
stands a s an instrument f or ensuring comp liance with int ernational law and how it
can str engthen it o r challenge i t.
Keywords: International Law, Legalization, Courts and Tribunals, Domestic Law,
Domestic Courts, Effectiveness, Implementation of International Law.
1 Mestre em Direito Internacional Público pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais; Coordenadora do Centro de Direito
Internacional – CEDIN. gabriela@cedin.com.br
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1 - Introdução
O Direito Internacional Público (DIP) tem ampliado sua abrangência e passou a
ter como objeto matérias socialmente relevantes como saúde, educação, economia e
direitos humanos. Como conseqüência desta expansão normativa2, um número maior
de relações passou a ser determinado por normas internacionais - não mais restritas,
apenas, às relações entre os Estados.3 A ampliação do âmbito de competência do
direito internacional, por um lado, potencializa sua relevância para os atos praticados
no interior do Estado que possam ser afetados por suas regulamentações; por outro
lado, as atividades realizadas no âmbito doméstico passam a ser determinantes para a
garantia do cumprimento dos acordos internacionais.4 Dessa forma, o monitoramento
e a efetividade de muitos compromissos assumidos internacionalmente dependerão
das escolhas de atores domésticos, e do engajamento de instituições nacionais para
aplicá-los.5
O argumento, a seguir, sustenta que a expansão das normas internacionais tem
transformado o DIP e está dando novos contornos ao sistema legal internacional. Por
boa parte dos últimos quatro séculos previa-se uma quantidade pequena de normas
regulamentando, essencialmente, questões relativas à conduta do Estado externamente
- como a conduta de diplomatas, o di reito do alto mar e a integridade territorial dos
Estados.6 O número de normas se expandiu de forma lenta durante a primeira metade
do século XX, mas a partir do fim da Segunda Guerra Mundial, e especialmente nas
últimas duas décadas, o direito internacional é gerado por um número crescente de
fontes normativas e esta sendo aplicado por um número maior de cortes e tribunais.
Regulamentações, geralmente em áreas específicas e relevantes, colocam o estado
sobre um número crescente de obrigações. Como efeito, o sistema legal internacional
está mais denso que jamais esteve. A criação de tantas obrigações legais sugere que
áreas que anteriormente estavam dentro da competência exclusiva do sistema político
nacional estão sendo legalizadas internacionalmente.7
2 Existem, hoje, mais de 55 mil tratados formais. Esse número triplica se forem contados outros atos derivados de direito internacional
significativos. Ver, esse sentido: ALSTINE, Michael P. Van. The role of domestic courts in treaty enforcement: summary and conclusions.
2009. p. 555. SHANY, Yuval. National courts as international actors: jurisdictional implications. 2008. p.4: “- um fenômeno que parece
está relacionado à expansão normativa do direito internacional, e, de maneira mais genérica, aos processos de interação e integração
econômicos, políticos e culturais (também conhecido como globalização).”
3 Ver nesse sentido: DAILLIER, Patrick; DINH, Nguyen Quoc; PELLET, Alain. Direito Internacional Público. 2003. p. 73: “Expansão
normativa – A intensificação das relações internacionais, a tomada de consciência da interdependência ainda favorecem mais o progresso
quantitativo do direito internacional do que o desenvolvimento das organizações internacionais. Todavia, os dois fenômenos estão ligados
[...]”, “ A época contemporânea, posterior ao segundo conflito mundial, conhece uma tal expansão do domínio das normas internacionais
que se pode falar de um verdadeira ‘explosão’ normativa[...]”, p.75: “A adaptação qualitativa”.
4 WISMER, Peter. Bring down the walls! – On the ever-increasing dynamic between the national and international domains. 2006. p. 513.
2006: “Este artigo argumenta que uma nova disciplina foi criada, uma que não pode ser entendida nem como direito interno nem como
direito internacional público – uma disciplina que combina gênesis no direito internacional público com efeitos no direito interno.”
(tradução livre).
5 SHANY, Yuval. No longer a weak department of power? Reflections I the emergence of a new international judiciary. 2009. p. 79;
SLAUGHTER, Anne-Marie; MATLLI, Walter. The role of national courts in the process of European integration: accounting for judicial
preferences and constraints. 1998, p. 255.
6 GROTIUS, Hugo. O direito da guerra e da paz (1625), 2004; VATTEL, Emmerich de, He Law of nations Book II (1760).
7 BURKE-WHITE, William W, International legal pluralism, 2004, p. 965-967.
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2 - O Direito Internacional Público clássico
Por muito tempo o DIP foi, estritamente, o que se propunha “internacional”, ou
seja, regulamentou apenas relações ocorridas entre as nações. Sua estrutura e seu
aparato legal e institucional se distinguiam e se oponham drasticamente ao sistema
jurídico interno. Recentemente, as normas internacionais passaram a se dedicar de
maneira mais direta às relações ocorridas no interior dos Estados. Os motivos desta
transformação nascem de novas necessidades geradas pela relação inter-estatal que,
contudo, exigiram que fosse deslocado o foco normativo para a gestão de relações
intra-estatal, ou seja, dentro do âmbito nacional, cuja regulamentação pertencia,
até então, exclusivamente à ordem jurídica doméstica8. Esse fenômeno é aparente,
principalmente, em áreas como Direitos Humanos, Direito Comercial, Direito Penal,
Direito do Trabalho e do Meio Ambiente.9
Há que se ter em mente que as bases sobre as quais se edificou o Direito Internacional
Público pertencem a um contexto histórico específico. A realidade européia, desde
a queda do Império Romano ocidental, até o século XIV, se caracterizava pelo uso
indiscriminado da força para a promoção de interesses privados ou coletivos.10 Hugo
Grócio, pensador que representa um conjunto de idéias que se cristalizavam nesta
época11, a partir da idéia de soberania, identifica a necessidade de um direito que
regulamente as relações entre os Estados. Isto porque a soberania se refletiria em
dois planos de maneira distinta. Pela perspectiva interna, a soberania representa
estabilidade territorial do exercício do uso da força e o monopólio desta pelo poder
Estatal. Em contrapartida, no plano internacional, a soberania inaugura uma sociedade
com sujeitos próprios, já que institui o Estado como uma unidade independente e
autônoma. Para Grócio, esta sociedade, como qualquer outra, somente poderia existir
se regulamentada pelo direito:
[...] vemos que os povos e os reis mais poderosos buscam alianças
que não possuem qualquer eficácia, segundo a opinião daqueles que
encerram a justiça dentro dos limites de cada Estado. Tanto isso é
8 DAILLIER, Patrick; DINH, Nguyen Quoc; PELLET, Alain. Direito Internacional Público. 2003. p. 457: “É a contrapartida da
internacionalização crescente dos problemas, que conduzia paralelamente a alargar a competência da ONU em matérias dependentes
tradicionalmente do direito interno – atividade econômica e social, direitos do homem, administração dos territórios não autônomos.”
9 PELLET, Alain. As novas tendências do direito internacional: aspectos ‘macrojurídicos’. 2004. p. 4.: “O Direito Internacional evolui
rapidamente, ele não parece por muito tempo parecido com o que era, ao direito que os ‘pais do direitos das gentes’, a começar por
Grotius, descreviam há quatro séculos: era, e permanece, contudo, um direito entre Estados soberanos, feito por estes, e impermeável a
qualquer idéia, não apenas de sanção de fatos internacionais ilícitos – sempre houve tal sanção -, mas de repressão centralizada.”.
10 SCHWARZENBERGER, Georg. The Gortius Factor in International Law and Relations: A Functional Approach.. 1990. p.301.
11 GRIBEL, Gabriela F.; ALVAREZ, Ana M. Principais contribuições de Hugo Grócio para o Direito Internacional. 2010, p.373: “Pode-
se questionar o título de ‘pai do Direito Internacional’ atribuído a Hugo Grócio, uma vez que Suarez, Vitoria, Gentili, (entre outros)
pensavam o Direito Internacional séculos antes. Contudo, é forçoso admitir a relevância do seu pensamento para as reflexões acerca
das relações internacionais. Suas obras são testemunhos da transformação da sociedade em que vivia para o mundo como entendemos
hoje. Os questionamentos trazidos por Grotius e a concepção da necessidade de regulamentação das relações ocorridas entre unidades
independentes e soberanas em um âmbito social próprio, sistematizou idéias pujantes de seu tempo que vieram a determinar as bases de
um direito criado para atender as necessidades desta nova sociedade de Estados que se cristalizava.
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