A política externa brasileira e a migração venezuelana: a atuação da Organização Internacional para as Migrações (OIM) no Brasil pelo Projeto Oportunidades (2016-2020)/Política exterior brasileña y migración venezolana: la actuación de la Organización Internacional para las Migraciones (OIM) en Brasil a través del Proyecto Oportunidades (2016-2020)/Brazilian foreign policy and Venezuelan migration: International Organization for Migration's (IOM) work in Brazil through the Opportunities Project (2016-2020).

AuthorDauer, Gabriel Roberto

INTRODUÇÃO

Até 2020, o número de migrantes atingiu a marca de 281 milhões de homens, mulheres e crianças, dentre essas pessoas mais de 82,4 milhões em situação de deslocamento forçado: refugiados, deslocados internos e solicitantes de refúgio (UNHCR, 2021; OIM, 2020a) (1). Em 2020, mesmo com a pandemia do novo coronavírus (COVID-19) e a restrição de mobilidade imposta pela maioria dos países devido ao fechamento de fronteiras, os deslocamentos não cessaram e milhões de migrantes enfrentaram mais um desafio na busca de segurança diante de inúmeras ameaças e perseguições contra suas vidas.

Embora não seja um novo fenômeno na história da humanidade, as migrações internacionais apresentam inúmeras particularidades nos séculos XX e XXI, sejam essas singularidades de caráter social, político, econômico, racial e de gênero. Nos anos 1980 os movimentos migratórios internacionais se intensificaram como consequência dos desdobramentos da globalização em seus diversos formatos: a pressão econômica sobre o comércio mundial, a mobilidade de capitais e o aumento das tecnologias da comunicação e dos transportes (Martine, 2005). No Brasil, a década de 1980, ainda sob a ditadura civil--militar (1964-1985), é relembrada como "década perdida" diante da situação interna de estagnação econômica e desemprego, responsável pela inversão do status de país de imigração para de emigração (Patarra, 1996).

No século XXI, os deslocamentos forçados ganham novos contornos e desafios tanto para aquelas pessoas que migram, quanto para as sociedades de acolhida e à governança global das migrações. Desde 2015 os deslocamentos forçados de venezuelanos têm chamado a atenção da comunidade internacional. A crise política, econòmica e social da Venezuela resultou em mais de 5,4 milhões de pessoas a deixarem o país nas mais diversas condições migratórias. Nessa conjuntura, o Brasil figura em sexto lugar dentre os maiores países de destino da imigração venezuelana e em primeiro lugar em concessões de refúgio para essa população (R4V, 2020) (2).

Para acolher os venezuelanos, o governo brasileiro tem buscado garantir os direitos dos migrantes como a regularização migratória pela Polícia Federal, a vacinação e a emissão da Carteira de Trabalho. Em relação à temática laboral, são realizadas ações de integração socioeconómica em todo o território nacional. Essas iniciativas partem não somente do Estado brasileiro, mas de Organizações Internacionais (OIs), Organizações Não Governamentais (ONGS), setor privado e demais atores nacionais e internacionais.

Soma-se a essas iniciativas de integração dos venezuelanos o projeto "Oportunidades-Integração no Brasil" da Organização Internacional para as Migrações (OIM), objeto deste artigo. O projeto, lançado em janeiro de 2020, visa apoiar a integração económica de imigrantes da Venezuela e de países vizinhos ao Brasil em distintas localidades no país (OIM, 2020). Financiado pela Agência dos Estados Unidos da América (EUA) para o Desenvolvimento Internacional (USAID), o projeto é implementado mediante parcerias com o setor privado e a sociedade civil e oferece suporte a ações de integração laboral de governos federal, estadual e municipal e de agências do sistema das Nações Unidas (OIM, 2020).

Diante do exposto, busca-se compreender os interesses do governo brasileiro em relação à participação da OIM em questões específicas da política migratória nacional, como a integração socioeconómica de venezuelanos no Brasil, entre 2016 e 2020. O argumento é de que o Brasil, ao buscar o estreitamento de suas relações com os EUA, alinhou sua política externa à do governo estadunidense no tocante à Venezuela e permitiu a maior participação de OIs como a OIM e de agências dos EUA como a USAID em sua política migratória nacional.

Metodologicamente, apresentamos os principais dados e elementos que estruturam o projeto Oportunidades (relatórios, informes e notícias), disponibilizadas nos websites da OIM, USAID e da Embaixada dos EUA no Brasil. Desses materiais, analisamos: i) os objetivos e as responsabilidades da OIM e da USAID no âmbito nacional; ii) o volume e a alocação orçamentária; iii) as articulações a nível nacional, estadual e municipal do projeto; e iv) as relações Brasil-OIM.

O artigo está estruturado em três seções, além desta introdução e conclusão. Na primeira seção, retomamos pontos importantes da política externa brasileira para compreender a posição do Brasil frente às migrações internacionais desde a redemocratização do país. Na segunda parte, apresentamos o histórico das relações Brasil-OIM no século XXI. Por último, analisamos o projeto Oportunidades à luz dos interesses do governo brasileiro.

  1. POLÍTICA EXTERNA BRASILEIRA E MIGRAÇÕES INTERNACIONAIS (1990-2017)

Com o fim da ditadura, a diplomacia brasileira começou a realizar esforços de reinserir o Brasil enquanto país democrático nas relações internacionais em um contexto maior: o fim da Guerra Fria, cuja política internacional foi marcada pela reformulação das agendas de política externa (e doméstica) de diversos países para que se adequassem à chamada "globalização" e à universalização de regimes políticos e econômicos liberais (Pecequilo, 2008). Na década de 1990, a política externa brasileira se voltou para projetos de integração regional de caráter comercial e econômico, como o Mercado Comum do Sul (MERCOSUL).

Havia também a tentativa de resgatar reconhecimento político do Brasil diante da comunidade internacional via um maior protagonismo em mecanismos multilaterais, especialmente na Organização das Nações Unidas (ONU). A abordagem se baseava em reforçar o prestígio da tradição diplomática brasileira, com enfoque na atuação do país em temas os quais o Brasil estava sendo pressionado, como direitos humanos e meio ambiente. Tratava-se também de uma tentativa da diplomacia brasileira de ocupar um assento permanente no Conselho de Segurança da ONU, valendo-se de um diálogo mais ativo na política internacional com aspiração de obter um papel de liderança regional, ademais dos esforços em promover sua reforma (Correa, 2007; Pecequilo, 2008).

Segundo Vigevani et al. (2003), no governo de Fernando Henrique Cardoso (FHC) (1995-2002) havia a preocupação de buscar nas normas e regimes internacionais o fortalecimento e o caráter institucionalista da diplomacia brasileira na era da globalização (Vigevani et al., 2003). Em relação à política migratória, o tema ganhou importância para a política externa brasileira e pautou ações do governo junto ao Ministério das Relações Exteriores (MRE), principalmente em relação à emigração brasileira (Reis, 2011). Na esteira desse caminho institucionalista e normativo, em 1995 foi lançado o Programa de Apoio aos Brasileiros no Exterior para desenvolver políticas específicas que dessem suporte às comunidades de brasileiros estabelecidas nos EUA, países da Europa Ocidental e Japão. Ainda no primeiro mandato de FHC, instaurou-se a Lei N.o 9474/1997, que define os mecanismos para aplicar a Convenção Relativa ao Estatuto dos Refugiados de 1951 e seu Protocolo Adicional de 1967, bem como a criação do Comitê Nacional para Refugiados (CONARE).

No entanto, foi no governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (Lula) que a política externa brasileira alcançou seu caráter mais progressista (Cervo e Lessa, 2014). Conhecida com "ativa e altiva", destacou-se nas pautas de integração regional, cooperação sul-sul e mobilidade, utilizando-se de instituições multilaterais existentes como Mercosul e participando da construção de relações estratégicas de cooperação como o Fórum de Diálogo Índia-Brasil-África do Sul (IBAS), BRICS, União de Nações Sul-Americanas (UNASUL) entre outras iniciativas que buscavam a ampliação dos intercâmbios, não apenas comerciais, mas políticos, sociais e culturais. A diversificação da diplomacia do governo Lula também contou com a pauta das migrações internacionais. Ao enquadrar os direitos humanos dos migrantes em foros e organismos multilaterais e questionar as hierarquias do sistema internacional, seu governo buscou denunciar o descompasso entre o discurso em defesa dos direitos humanos e a securitização da agenda migratória por países da União Europeia e dos EUA (Reis, 2011).

Em 2007, a pauta sobre emigração de brasileiros intensificou-se diante da crise económica dos países do norte global iniciada, ano em que o MRE criou a Subsecretaria-Geral das Comunidades Brasileiras no Exterior (SGEB) para garantir direitos e promover políticas públicas às comunidades brasileiras em território estrangeiro. No MERCOSUL, os debates centraram-se em questões sociopolíticas, como as migrações (Caballero, 2013) e, em 2008, foi aprovado o Acordo sobre Documentos de Viagem dos Estados Partes do MERCOSUL e Estados Associados, promulgado em 2009 pelo Decreto No 6.975 o Acordo de Residência para Nacionais dos Estados Partes do MERCOSUL, Bolívia e Chile (Reis, 2011; Uebel e Ranincheski, 2017).

Ao assumir a presidência, Dilma Rousseff (2011-2016) deparou-se com um contexto internacional de incertezas na economia global, fruto do forte impacto da crise financeira que afetou a zona do euro, a economia dos EUA e reduziu também o crescimento da China. Esses fatores diminuíram e dificultaram as exportações brasileiras, o que levou o governo a impor uma série de políticas fiscais e monetárias que desagradaram setores-chave do empresariado e da política nacional (Farias e Alves, 2020). No campo das migrações, o governo brasileiro diante dos novos fluxos migratórios advindos principalmente do Haiti, a partir de 2010, viu-se carente de políticas migratórias adequadas para a gestão do fenômeno inesperado. Em resposta a esses deslocamentos, destacam-se três investidas na política migratória: i) a publicação do documento "Política Nacional de Imigração e Proteção ao(à) Trabalhador(a) Migrante" (2010) pelo Conselho Nacional de Imigração (CNIg), com apoio da Organização Internacional do Trabalho (OIT); ii) a criação do visto especial...

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