Ne bis in idem versus independência entre as instâncias: conflito real ou putativo?

AuthorAlice Silveira de Medeiros
PositionMestra em Direito do Estado pelo Programa de Pós-graduação da Universidade Federal do Paraná (Curitiba-PR, Brasil)
Pages123-155
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Revista Eurolatinoamericana
de Derecho Administrativo
ISSN 2362-583X
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Resumo:
No centro da discussão sobre a viabilidade – ou não – de
cumulação de imputações e sanções pelos mesmos fa-
tos se encontra o chamado princípio da independência
entre as instâncias. Analisa-se alguns dos eventos que
circundaram a consagração de tal princípio; e, em vista
do conteúdo e das implicações do que se convencionou
chamar ne bis in idem, verica-se acerca da (in)compatibi-
lidade desses dois institutos e, então, propõem-se uma
possível interpretação a partir da lei da colisão desenvol-
vida por Robert Alexy.
Palavras-chave: direito do estado; poder; controle; inde-
pendência de instâncias; ne bis in idem.
Abstract:
At the center of the discussion about the viability – or not –
of the accumulation of punishments and sanctions by the
same facts is found the called principle of independence
between the instances. One analyses some of the events
that are related to the consecration of such principle; and,
because of the content and of the implications of what has
been agreed to be called ne bis in idem, it is veried that
there is an incompatibility between these two institutes so,
therefore, it is proposed that there should be a possible in-
terpretation beginning from the collision law proposed by
Robert Alexy.
Keywords: public law; power; control; independence of in-
stances; ne bis in idem.
Como citar este artículo | How to cite this article: MEDEIROS, Alice Silveira de. Ne bis in idem versus independência entre as
instâncias: conito real ou putativo? Revista Eurolatinoamericana de Derecho Administrativo, Santa Fe, vol. 8, n. 2, p. 123-
155, jul./dic. 2021. DOI 10.14409/redoeda.v8i2.10670.
* Mestra em Direito do Estado pelo Programa de Pós-graduação da Universidade Federal do Paraná (Curitiba-PR, Brasil). Pós-
graduada em Contratações Públicas pela Universidade de Coimbra (Coimbra, Portugal). Especialista em Licitações e Contratos
Públicos com Tópicos Especiais em Direito das Concessões pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (Curitiba, Brasil).
Atualmente é Membro da Comissão de Gestão Pública, Transparência e Controle da Administração da OAB/PR. Advogada.
E-mail: silveira.alice@hotmail.com.
DOI 10.14409/redoeda.v8i2.10670
Ne bis in idem versus independência entre as instâncias:
conito real ou putativo?
Ne bis in idem versus independence between instances:
real or putative conict?
ALICE SILVEIRA DE MEDEIROS I,*
I Universidade Federal do Paraná (Curitiba, Brasil)
silveira.alice@hotmail.com
https://orcid.org/0000-0002-9347-9844
Recibido el/Received: 16.10.2021 / October 16th, 2021
Aprobado el/Approved: 19.12.2021 / December 19th, 2021
Rev. Eurol atin. de Derecho A dm., Santa Fe, vo l. 8, n. 2, p. 123-155, jul. /dic. 2021.
Alice Silveira de Medeiros
Rev. Eurol atin. de Derecho A dm., Santa Fe, vo l. 8, n. 2, p. 123-155, jul. /dic. 2021.
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Sumário:
1. Apontamentos acerca dos campos de responsabilidade; 2. O sentido do termo inde-
pendência, a vedação ao bis in idem e o exemplo espanhol; 3. Uma solução possível pela
teoria da colisão de Robert Alexy; 4. Considerações nais. Referências.
1. APONTAMENTOS ACERCA DOS CAMPOS DE RESPON-
SABILIDADE
É prevalente na doutrina e na jurisprudência brasileiras o entendimento de que um
princípio de independência entre as instâncias acobertaria o exercício do poder repres-
sivo detido Estado, nos variados campos de responsabilidade em que se manifesta. Daí
decorre, dentre outras coisas, a possibilidade de que agentes públicos tomem decisões
diferentes em vista dos mesmos fatos; e de que alguém seja absolvido por um juiz e
condenado por outro, em razão de um mesmo ato.
Isso pode acontecer em diversos âmbitos do direito, mas em casos de improbida-
de administrativa essa independência acaba gerando maior perplexidade, por conta
de certas implicações concretas. É difícil explicar, senão juridicamente, que o Estado
possa, sendo ele um só – tal como o poder que emprega para solucionar os conitos –,
dar soluções opostas a processos que possuem base fática idêntica; e aplicar, por vias
separadas (independentes), sanções equivalentes. Mas, mesmo juridicamente, pensar
essa realidade, a partir dessas premissas, gera desconforto.
De fato, pode-se dizer, seguramente, que a Constituição da República de 1988 dis-
tingue sanções, como que por espécies, em linha com uma tradicional divisão do di-
reito em ramos (penal, civil, administrativo) – o § 3º1, do art. 225, é um exemplo disso
–, mas que as correlatas instâncias incumbidas da aplicação não devam se comuni-
car, ou se comunicar na menor medida possível, isso, ela não arma. Pelo menos, não,
literalmente.
O Código Civil de 19162 já previa que a responsabilidade civil era independente da
criminal (art. 1.5253). No entanto, foi depois da Constituição de 1988 que uma gama de
1 § 3º As condutas e atividades consideradas lesivas ao meio ambiente sujeitarão os infratores, pessoas
físicas ou jurídicas, a sanções penais e administrativas, independentemente da obrigação de reparar os danos
causados”.
2 O Código Penal de 1890 previa no art. 31, “a isenção da responsabilidade criminal não implica a da
responsabilidade civil”, mas essa disposição não foi reproduzida no Código de 1940, nem na reforma de 1984;
e acabou migrando para o Código Civil de 1916.
3 Estabelecendo, nada obstante, como exceção, a hipótese de ser negada a existência do fato ou quem seja o
seu autor, pelo juízo criminal. Por sinal, esta é, ainda hoje, uma das únicas hipóteses de comunicabilidade da
decisão criminal (conforme o disposto no art. 935, do Código Civil de 2002; e no art. 126, da Lei nº 8.112/1990).
Para além dela, apenas se tem a previsão do art. 65, do Código de Processo Penal, no sentido de que: “[f]az
coisa julgada no cível a sentença penal que reconhecer ter sido o ato praticado em estado de necessidade,
em legítima defesa, em estrito cumprimento de dever legal ou no exercício regular de direito”; mas a previsão
contida no subsequente art. 66 (já em vigor quando da promulgação da Constituição de 1988), é a seguinte:
Ne bis in idem versus independência entre as instâncias:
conito real ou putativo?
Rev. Eurol atin. de Derecho A dm., Santa Fe, vo l. 8, n. 2, p. 123-155, jul. /dic. 2021. 125
leis de conteúdo sancionador, que se repetem em termos de qualicação das condutas
proibidas e das sanções incidentes – e armam, direta ou indiretamente, essa indepen-
dência –, começou a ser editada4.
O dispositivo que costuma ser invocado para respaldar a tese de que existe um fun-
damento constitucional para isso é o § 4º, do art. 37; e o que ele estabelece é o seguinte:
“os atos de improbidade administrativa importarão a suspensão dos direitos políticos,
a perda da função pública, a indisponibilidade dos bens e o ressarcimento ao erário, na
forma e gradação previstas em lei, sem prejuízo da ação penal cabível”.
Daí, então, questiona-se: é isso o que esse “sem prejuízo da ação penal cabível” signi-
ca? Que a todo ato de improbidade corresponderá um crime? Que se deve replicar as
tipicações? Que não tem problema, inclusive, repetir as sanções aplicáveis?
Mais importante do que tentar identicar qual teria sido a vontade do legislador
constituinte, parece ser analisar as construções dogmáticas que cercam os institutos
e o grau de compatibilidade que guardam com os postulados do sistema jurídico em
foco, mas, neste caso, é interessante lembrar que, durante o processo constituinte, o
dispositivo em questão sofreu uma alteração. Até um certo momento a redação era
“sem prejuízo da ação penal correspondente. A justicativa para substituir por cabível
foi, precisamente, a de que o “correspondente” levava a pensar isso; e não era para ser
assim5.
Nada obstante, na prática, os casos que atraem a incidência da Lei da Improbidade
Administrativa posta em vigor em 1992 (Lei nº 8.429/1992) podem, também, ensejar a
aplicação das penas e sanções previstas, por exemplo – apenas para citar alguns –, no
Título XI, do Código Penal, que versa sobre os crimes contra a Administração Pública;
no Capítulo II-B, da Lei de Licitações e Contratos Administrativos (Lei nº 14.133/2021,
recém promulgada para substituir a Lei nº 8.666/1993), que tipica os crimes em li-
citações e contratos administrativos; nos diplomas que dispõem sobre os crimes de
responsabilidade (Lei nº 1.079/1950 e Decreto-lei nº 201/1967, dentro outros); além
“[n]ão obstante a sentença absolutória no juízo criminal, a ação civil poderá ser proposta quando não tiver
sido, categoricamente, reconhecida a inexistência material do fato”.
4 É o caso, por exemplo, da própria Lei de Improbidade Administrativa (Lei nº 8.429/1992) e de muitos Estatutos
de Servidores Públicos, destacando-se a Lei nº 8.112/1990 (que dispõe sobre o regime dos servidores públicos
civis da União, das autarquias e das fundações públicas federais) e a Constituição do Estado de São Paulo,
porque úteis ao presente estudo.
5 Até a Emenda nº 00559, discutida em Plenário pela Comissão de Sistematização, em 1º Turno, é que a
redação dessa parte nal do dispositivo – que nessa altura era o 44, § 3º, – era “sem prejuízo da ação penal
correspondente”. E o parecer da Emenda nº 00559, que antecedeu a Emenda nº 02039, por meio da qual a
mudança se deu, diz o seguinte, textualmente: “[n]a verdade, nem todo ato de improbidade é considerado
crime, razão pela qual as questões especícas devam ser disciplinadas pela legislação ordinária. O elenco de
punições previstas no texto são (sic) sucientemente rigorosas, sua forma e gradação basicamente, foram
remetidos à lei” (BRASIL. Congresso Nacional. Câmara dos Deputados. Centro de Documentação e Informação,
2018. Disponível em: . Acesso 15 ago. 2021).

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