A natureza democrática e a construção social da verdade histórica e sua relação com o Estado, o regime militar e a sociedade civil: aspectos introdutórios

AuthorRogério Gesta Leal
PositionProfessor Titular da Universidade de Santa Cruz do Sul, UNISC (Santa Cruz do Sul-RS) e da UNOESC
Pages209-246
A RESPONSABILIDADE DO ESTADO POR ATOS DE
TORTURA, SEQUESTRO, DESAPARECIMENTO E MORTE
DE PESSOAS EM REGIMES DE EXCEÇÃO: ASPECTOS
INTRODUTÓRIOS*
STATE LIABILITY FOR TORTURE, KIDNAPPING,
DISAPPEARANCE AND DEATH OF PEOPLE IN REGIMES OF
EXCEPTION: INTRODUCTORY ASPECTS
Rogério Gesta Leal
Professor Titular da Universidade de Santa Cruz do Sul – UNISC (Santa Cruz do Sul-RS) e da UNOESC. Doutor em Direito
do Estado pela Universidade Federal de Santa Catarina e Doutor em Direitos Humanos pela Universidad de Buenos
Aires. Professor Visitante da Università Túlio Ascarelli – Roma Trè, Universidad de La Coruña – Espanha e Universidad
de Buenos Aires. Professor da Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento da Magistratura – ENFAM. Membro
da Rede de Direitos Fundamentais-REDIR, do Conselho Nacional de Justiça-CNJ, Brasília. Coordenador Cientíco do
Núcleo de Pesquisa Judiciária, da Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento da Magistratura – ENFAM, Brasília.
Membro do Conselho Cientíco do Observatório da Justiça Brasileira. Desembargador do Tribunal de Justiça do Estado
do Rio Grande do Sul. E-mail: gestaleal@gmail.com
Recibido el: 02.11.2013
Aprobado el: 13.01.2014
Revista Eurolatinoamericana
de Derecho Administrativo
ISSN 2362-583X
Resumo
Pretende este trabalho indagar, genericamente, sobre as
possibilidades de responsabilização do Estado por atos
de tortura, seqüestro, desaparecimento e morte de pes-
soas em regimes de exceção.
Palavras-chave: responsabilidade do Estado; regime mi-
litar; violações aos direitos humanos.
Abstract
This work aims to investigate, more generally, about the
possibilities of the state liability for torture, kidnapping,
disappearance and death of people in regimes of excep-
tion.
Keywords: State liability; military regime; human rights
violations.
Referencia completa de este artículo: LEAL, Rogério Gesta. A responsabilidade do Estado por atos de tortura, sequestro, desaparecimento
e morte de pessoas em regimes de exceção: aspectos introdutórios. Revista Eurolatinoamericana de Derecho Administrativo, Santa
Fe, vol. 1, n. 2, p. 209-246, jul./dic. 2014.
*Este trabalho foi desenvolvido no âmbito do Projeto de Pesquisa intitulado: A natureza losóca e política da democracia deliberativa e
participativa e seus efeitos pragmáticos no âmbito das políticas públicas no Estado Democrático de Direito brasileiro: limites e condicionantes
do diálogo entre o político e o jurídico, junto ao Programa de Mestrado e Doutorado em Direito da Universidade de Santa Cruz do Sul, bem
como é fruto dos seminários de Doutorado em Direito.
doi: www.dx.doi.org/10.14409/rr.v1i2.4624
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Sumário
1. Notas introdutórias. 2. O regime de exceção militar e a violação dos direitos fundamentais. 3.
Marcos normativos internacionais e nacionais sobre o tema. 4. Estado da arte do enquadramento
dogmático da Responsabilidade em geral do Estado Administrador no Brasil e sua possibilidade
aplicativa para os comportamentos de exceção do regime militar. 5. Referências.
1. Notas introdutórias
Pretendo neste ensaio tratar do tema da responsabilidade do Estado brasileiro por
atos de tortura, seqüestro, desaparecimento e morte de pessoas no período do regime
militar. Para tanto, quero contextualizar o debate a partir da perspectiva do direito in-
ternacional e nacional.
2. O regime de exceção militar e a violação dos direi-
tos fundamentais
É notório na história recente do Brasil que, desde a edição do AI-5, em 13/12/1968, e
do Decreto-Lei nº477/1969, e sob as suas sombras, se praticaram as maiores arbitrarie-
dades a repercutir intensamente nos direitos dos cidadãos, que se viram inteiramente
desprotegidos e submetidos a uma onda de repressão até então nunca vista. O gover-
no militar conseguiu exilar milhares de pessoas e cassações políticas.
Os esquadrões da morte, desde 1968, eliminaram um número até hoje desconheci-
do de pessoas. A esse número somam-se os extermínios efetuados pelo aparelhamen-
to policial em nome da segurança e do restabelecimento da ordem. Neste cenário de
horror, é preciso lembrar que: Not only missing persons should be considered as victims
but also all the members of their families understood in their broadest possible sense.1
Registram-se, ainda, as alterações levadas a efeito no texto constitucional e na edi-
ção de determinadas leis, como, dentre outras, as já citadas Lei de Imprensa, a Lei An-
tigreve, a Lei de Segurança Nacional, o Estatuto do Estrangeiro, para que o sistema en-
contrasse sua sustentação. Francisco C. Weort dá uma idéia clara do panorama geral
brasileiro deste período:
Nos dez anos que vão de 1964 a 1974, o sistema político formado durante o período
democrático foi inteiramente destroçado. Não apenas foi destruído o sistema parti-
dário, abolido em 1965, para dar lugar ao simulacro de bipartidarismo ARENA-MDB,
o qual não passou durante os anos Medici de um exercício de cção política. Nos
1 ICRC Report. The missing and their families: Summary of the conclusions arising from the events held
prior to the International Conference of Governmental and Non-Governmental Experts (19 – 21 February
2003), p. 11. In http://www.icrc.org, acesso em 22/02/2011. Diz o relatório ainda que: Such a situation is bound
to have a direct impact on others as well. It will aect the entire community and its capacity to cope with its past, to
end the war or violence in which it stagnates and ensure sustainable peace. As outlined in the South African Truth
and Reconciliation Commission’s objectives, ‘‘establishing and making known the fate and whereabouts of victims’’
is one of the means of achieving national unity and reconciliation.
A RESPONSABIL IDADE DO ESTADO P OR ATOS DE TORTURA , SEQUESTRO, DESAPA RECIMEN TO
E MORTE DE PESSOAS EM R EGIMES DE EXCEÇÃO : ASPECTOS INTRODU TÓRIOS
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anos de terror, após 1968, a própria imprensa tornou-se, através da censura, em um
simulacro de si própria. Na ausência do habeas corpus, para mencionar logo o caso
extremo, o sistema judiciário se anulou como poder independente. E o Congresso,
destituído dos seus poderes e ameaçado pelo fantasma das cassações, converteu-se
em cenário sem vida.2
O Estado brasileiro se agurou, em muitos de seus quadros, como que gerenciando
o terror institucional, reivindicando para si o monopólio do exercício ilegítimo da vio-
lência; foi manejado como um objeto particular, alheio a qualquer nalidade pública e
perdido por uma crise de identidade sem precedentes. Na concepção política de Clau-
de Lefort, este tipo de governo conseguiu, com tais comportamentos, criar um anti-Es-
tado, gerido por um conjunto desordenado de iniciativas políticas, todas tendentes ao
arbítrio cada vez mais intenso de alguns comandantes das Forças Armadas.3 Forja-se,
aqui, o que Coetzee chama de um verdadeiro Estado Bandido, blindando ações de ta-
manha violência física e simbólica referidos com vestes de legalidade formal autoritária,
e operando com a lógica da disseminação do medo para desmobilizar a sociedade. 4
Com a formação do Destacamento de Operações de Informações e o Centro de
Operações de Defesa Interna (DOI-CODI), em janeiro de 1970, formalizou-se no Exército
um comando que centralizou as ações das demais Armas e da polícia federal e esta-
dual no âmbito da repressão. Da mesma forma, em nível estadual, os militares ainda
contaram com o Departamento de Ordem Política e Social (DOPS) para lhes auxiliar
nestas tarefas.5 Não se pode esquecer também a experiência dantesca da chamada
Operação Bandeirantes (OBAN), congurando-se como verdadeiro e estruturado regi-
me de exceção paralelo ao Estado, eis que, conforme Paulo Sérgio Pinheiro, composto
por circuitos fora da hierarquia militar, nanciada por empresários paulistas em 1969.6
Em nível das Forças Armadas, há registros históricos de que se formaram também
macro-estruturas de inteligência e repressão militar, a saber: (1) o Centro de Informa-
ções da Marinha – CENIMAR; (2) o Centro de Informações do Exército – CIE; (3) o Centro
de Informação e Segurança da Aeronáutica – CISA. A estes se vinculavam os órgãos
estaduais e mesmo municipais envolvidos na segurança pública da polícia civil e da bri-
gada militar. Estes órgãos tinham, por sua vez, uma bem montada organização interna
e de procedimentos, envolvendo: (a) Setor de Inltração, responsável pela investigação,
inltração e espionagem nos movimentos de oposição; (b) Setor de Busca, responsável
2 WEFORT, Francisco. Por que democracia ? São Paulo: Brasiliense,1984, p.65.
3 LEFOR T, Claude. L’Invention Démocratique- Les limites de la domination totalitaire. Paris: Librairie
Arthème Fayard, 1981; ---Essais sur le politique - XIX-XX siècles. Paris: Librairie Arthème Fayard, 1984;
---Pensando o Político. São Paulo: Paz e Terra, 1991.
4 COETZEE, J. M. Diary of a bad year. New York: Penguin, 2007.
5 VÁRIOS AUTORES. Brasil: Nunca Mais. Publicado pela Arquidiocese de São Paulo. Rio de Janeiro: Vozes, 1985.
6 PINHEIRO, Paulo Sérgio. Esquecer é começar a morrer. In SOARES, Inês V. P. & KISHI, Sandra A. S. Memória e
Verdade: a justiça de transição no Estado Democrático Brasileiro. Belo Horizonte: Fórum, 2009, p.15.

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