Brasil, Supremo Tribunal Federal, Mandado de Injunção 4.733, 13 de junho de 2019

Subject MatterDiscriminação por orientação sexual ou identidade de gênero,Lgbti,Direito à liberdade de orientação sexual
1. Identificação da sentença
Brasil, Supremo Tribunal Federal, Mandado de Injunção 4.733, 13 de junho de 2019.
2. Resumo
O Supremo Tribunal Federal, por maioria, julgou o mandato de injunção procedente e reconheceu a mora
inconstitucional do Congresso Nacional e a aplicação, com efeitos prospectivos, até que o Congresso Nacional
venha a legislar a respeito, da Lei 7.716/1989 a fim de estender a tipificação prevista para os crimes resultantes
de discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional à discriminação por
orientação sexual ou identidade de gênero. Para o STF, a omissão legislativa em tipificar a discriminação por
orientação sexual ou identidade de gênero ofende um sentido mínimo de justiça ao sinalizar que o sofrimento e a
violência dirigida a pessoa gay, lésbica, bissexual, transgênera ou intersex é tolerada, como se uma pessoa não
fosse digna de viver em igualdade. A Constituição não autoriza tolerar o sofrimento que a discriminação impõe.
A discriminação por orientação sexual ou identidade de gênero, tal como qualquer forma de discriminação, é
nefasta, porque retira das pessoas a justa expectativa de que tenham igual valor.
3. Fatos
Trata-se de mandado de injunção impetrado pela Associação Brasileira de Gays, Lésbicas e Transgêneros
ABGLT em face do Congresso Nacional a fim de: “obter a criminalização específica de todas as formas de
homofobia e transfobia, especialmente (mas não exclusivamente) das ofensas (individuais e coletivas), dos
homicídios, das agressões, ameaças e discriminações motivadas pela orientação sexual e/ ou identidade de
gênero”.
O impetrante alegou, em síntese, que é necessária a criminalização específica, “porque o atual quadro de violência
e discriminação contra a população LGBT tem tornado faticamente inviável o exercício dos direitos fundamentais
à livre orientação sexual e à livre identidade de gênero das pessoas LGBT em razão do alto grau de violência e
discriminação contra elas perpetradas na atualidade”. Arguiu que, segundo o princípio da proporcionalidade, é
proibida a proteção deficiente, devendo o Estado agir por meio do Direito Penal. Aduz haver obrigação
constitucional de legislar para criminalizar a homofobia e transfobia, porquanto, em seu entender, “a homofobia
e a transfobia constituem espécies do gênero racismo”, e elas se enquadrariam, ainda, no conceito de
“discriminações atentatórias a direitos e liberdades fundamentais”, consoante o disposto no artigo 5º, XLI, da
CRFB. Alega que a equiparação ao racismo é também devida para não se hierarquizar opressões, o que afrontaria
o direito à igual proteção penal. Ao fim, requer a impetrante que o Tribunal dê concretude ao texto constitucional
para criminalizar condutas homofóbicas e transfóbicas, para incluir “a criminalização específica de todas as
formas de homofobia e transfobia, especialmente (mas não exclusivamente), das ofensas (individuais e coletivas),
dos homicídios, das agressões, ameaças e discriminações motivadas pela orientação sexual e/ ou identidade de
gênero, real ou suposta, da vítima na Lei de Racismo (Lei n. 7.716/89), determinando-se a aplicação da referida
lei (e outra que eventualmente a substitua) para punir tais atos até que o Congresso Nacional se digne a
criminalizar tais condutas”.
Em sede de informação o Presidente da Câmara dos Deputados informou que está em tramite o Projeto de Lei n.
5003/2001, que dispõe sobre as sanções aplicáveis à conduta homofóbica, afirmou não ser possível equiparar a
ausência de lei a uma omissão inconstitucional, muito menos afirmar que a criminalização dessas condutas
decorre de uma exigência taxativa do texto constitucional. A União, por sua vez, aduziu que não existe qualquer
comando constitucional que exija a tipificação específica para a homofobia e transfobia e que não é possível
suprir a omissão em matéria penal por meio de decisão judicial.
A Procuradoria-Geral da República manifestou-se pela procedência do mandado de injunção, ao considerar que,
em que pese à existência de projetos de lei em trâmite no Congresso Nacional, sua tramitação por mais de uma
década sem deliberação frustra a força normativa da Constituição. A ausência de tutela judicial concernente à
criminalização da homofobia e da transfobia mantém o estado atual de proteção insuficiente ao bem jurídico
tutelado e de desrespeito ao sistema constitucional.
O Presidente do Senado Federal, por sua vez, alegou que “a pura e simples criminalização de condutas não tem
se revelado abordagem adequada para expurgar a sociedade de seus demônios” e impugnou, por fim, a
possibilidade de que o Supremo Tribunal Federal venha a disciplinar a matéria, porquanto, em seu entender,
haveria ofensa à separação dos poderes.
Foram admitidos como amici curiae o Conselho Federal de Psicologia e o Grupo Dignidade.
O Supremo Tribunal Federal decidiu por dar provimento a demanda promovida pela Associação Brasileira de
Gays, Lésbicas e Transgêneros ABGLT, para (i) reconhecer a mora inconstitucional do Congresso Nacional e;
(ii) aplicar, com efeitos prospectivos, até que o Congresso Nacional venha a legislar a respeito, a Lei 7.716/1989
a fim de estender a tipificação prevista para os crimes resultantes de discriminação ou preconceito de raça, cor,
etnia, religião ou procedência nacional à discriminação por orientação sexual ou identidade de gênero
4. Decisão
O Supremo Tribunal Federal teve que determinar se a omissão legislativa em tipificar a discriminação por
orientação sexual ou identidade de gênero estava em desacordo, ou não, com a Constituição e se a demora
legislativa na matéria poderia responsabilizar o Estado, sabendo se há na Constituição um mandado específico
de criminalização.
Assim, o Relator do Supremo, Ministro Edson Fachin, preliminarmente, ressaltou A imputação da mora
legislativa é ainda mais grave caso se tenha em conta as recorrentes notícias de violações dos direitos das pessoas
gays lésbicas, bissexuais, trans e intersex no Brasil. Destacou o fato de que, de acordo com o Relatório Violência
contra Pessoas Lésbicas, Gays, Bissexuais, Trans e Intersex nas Américas, da Comissão Interamericana de
Direitos Humanos, o Brasil é o país onde mais ocorreram relatos de violência contra a população LGBTI
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, no
mesmo relatório, consta ainda advertência ao uso de expressões estigmatizantes e intolerantes pelo Presidente da
Comissão de Direitos Humanos da Câmara de Deputados do Brasil em 2013. Ademais, o relatório apontou que
as pessoas que defendem os direitos das pessoas LGBTI estão sob maiores riscos e que em um contexto em que
perseveram desigualdades sociais e raciais, a exclusão social da comunidade LGBTI reforça a dinâmica de
invisibilidade a que as pessoas pobres e negras estão sujeitas. O quadro de violações, portanto, há muito está
reconhecido, a impedir que se acolha a tese de se aguardar a apreciação pelo Congresso Nacional das omissões
que se lhe imputam. Nenhuma instituição pode deixar de cumprir integralmente a Constituição. Por essas razões,
rejeitou as preliminares relativas ao conhecimento da ação.
No mérito, o magistrado arguiu que é atentatório ao Estado Democrático de Direito qualquer tipo de
discriminação, inclusive a que se fundamenta na orientação sexual das pessoas ou em sua identidade de gênero,
nesse sentido a Corte Interamericana de Direitos Humanos na Opinião Consultiva OC-24/17
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definiu identidade
1
OAS/Ser.L/V/II.rev.1/ Doc. 36, 12 de novembro de 2015, par. 124.
2
Corte Interamericana de Direitos Humanos. OC-24/17, 24.11.2017, par. 32.
de gênero como a vivência interna e individual do gênero tal como cada pessoa o sente e a orientação sexual
como a atração emocional, afetiva e sexual por pessoa de um gênero diferente do seu, ou do seu mesmo gênero,
ou de mais um gênero.
De igual modo, o Supremo
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já afirmou que o sexo das pessoas não pode ser fator de desigualdade jurídica, sendo
o uso da sexualidade parte da autonomia de vontade, ainda, em outro precedente o Tribunal
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afirmou que o
reconhecimento do direito à liberdade de orientação sexual condiz com a própria liberdade existencial do
indivíduo. Mais recentemente, assentou o Tribunal
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que “o direito à igualdade sem discriminações abrange a
identidade ou expressão de gênero” e que “a identidade de gênero é manifestação da própria personalidade da
pessoa humana e, como tal, cabe ao Estado apenas o papel de reconhecê-la, nunca de constituí-la”. Relembrou o
Ministro dos entendimentos proferidos no âmbito internacional, como o Comentário Geral n. 20
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do Comitê de
Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, que observou que “os Estados devem garantir que a orientação sexual
de uma pessoa não é uma barreira para a realização dos direitos desta Convenção”. Portanto, concluiu que, sendo
atentatória ao direito à igual dignidade, a discriminação homo e transfóbica é incompatível com o Estado de
Direito e reclama, por expressa incidência do art. 5º, XLI, da CRFB, punição da lei.
O relator arguiu, ademais, que a Constituição expressa um mandado específico de criminalização da
discriminação baseada na orientação sexual e na identidade de gênero, nesse sentido, há, na jurisprudência da
Corte e na das organizações internacionais de direitos humanos, um nítido mandado de criminalização das
manifestações homofóbicas. O Supremo Tribunal Federal
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, em diversas oportunidades, já julgou que a proteção
dos direitos fundamentais pode implicar também a criação de tipos penais próprios, assim, a Constituição de 1988
contém um significativo elenco de normas que, em princípio, não outorgam direitos, mas que, antes, determinam
a criminalização de condutas, de acordo com esses entendimentos o princípio da proporcionalidade, na
modalidade de proibição de proteção insuficiente é o fundamento pelo qual a Corte tem reconhecido que o direito
penal é o instrumento adequado para a proteção de bens jurídicos expressamente indicados pelo texto
constitucional. Além da Constituição os próprios tratados internacionais de que a República brasileira é parte
preveem e contém mecanismos de proteção proporcional, nessa perspectiva, os Princípios de Yogyakarta
recomendam, por sua vez, que os Estados emendem sua legislação, inclusive a criminal, “para garantir sua
coerência com o gozo universal de todos os direitos humanos”. Assim, extrai-se, da leitura do texto da Carta de
1988 um mandado constitucional de criminalização no que pertine a toda e qualquer discriminação atentatória
dos direitos e liberdades fundamentais, incluindo, por evidente, a de orientação sexual e de identidade de gênero.
Ainda, o Ministro Edson Fachin afirmou que, no que tange ao cumprimento desse dever constitucional o
legislador nacional não ficou completamente inerte, mas, em que pesem as inovações legislativas, não foram
tipificadas discriminações atentatórias dos direitos e liberdades fundamentais ligados ao sexo e à orientação
sexual. Aduziu que a lacuna não decorre exclusivamente da falta de norma que tipifique o ato atentatório, mas
também da própria ofensa à igualdade, uma vez que condutas igualmente reprováveis recebem tratamento jurídico
distinto, nessa dimensão, considerou que a omissão legislativa estaria a indicar que o sofrimento e a violência
dirigida a pessoa homossexual ou transgênera é tolerada, como se uma pessoa não fosse digna de viver em
igualdade, deve ser aplicado diretamente o princípio constitucional da dignidade humana no caso em tela. O
princípio da dignidade da pessoa humana busca proteger de forma integral o sujeito na qualidade de pessoa
vivente em sua existência concreta é, portanto, uma imposição obrigativa no presente, mas também sempre um
norte futuro, um vetor interpretativo, sua aplicação, porém, não pode inibir ou ofuscar a aplicação direta de outros
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Brasil. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade 4.277. 13 de outubro de 2011.
4
Brasil. Supremo Tribunal Federal. Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 291. 10 de maio de 2016.
5
Brasil. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade 4.275. 01 de março de 2018.
6
Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais. Comentário Geral nº 20. E/C.1 2/GC/28, par. 32.
7
Brasil. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade 4.277. 13 de outubro de 2011.
Brasil. Supremo Tribunal Federal. Habeas Corpus 104.410. 26 de março de 2012.
direitos fundamentais que dele derivam. Nesse ínterim, julgou que a sexualidade constitui dimensão inerente à
dignidade da pessoa humana e cabe ao Estado também protegê-la, a proteção é indispensável porque é o espaço
público o lugar próprio da sexualidade, não se pode privar ninguém do convívio com a pluralidade. A colmatação
da omissão legislativa constitui, assim, exigência de coerência normativa, destarte, a Corte Constitucional,
sempre que invocado o direito à igualdade, tem o dever de proteger a integridade do direito.
A partir de tais premissas o relator considerou que a igualdade exige que se reconheça a igual ofensividade do
tratamento discriminatório e, portanto, votou no sentido de julgar procedente o mandado de injunção para (i)
reconhecer a mora inconstitucional do Congresso Nacional e; (ii) aplicar com efeitos prospectivos, até que o
Congresso Nacional venha a legislar a respeito, a Lei 7.716/89 a fim de estender a tipificação prevista para os
crimes resultantes de discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional à
discriminação por orientação sexual ou identidade de gênero.
A Ministra Carmen Lucia reconhece a mora legislativa, contudo, afirma que apenas o Poder Legislativo pode
criminalizar condutas, sendo imprescindível lei em sentido formal. Por esta razão, voto no sentido que não seja
conhecido o presente mandado de injunção e que, acaso conhecido, seja julgado prejudicado. Superadas as
preliminares, voto para que seja provido o writ, de maneira a reconhecer a mora legislativa, dando-se ciência ao
Congresso Nacional para a adoção das providências necessárias.
O Ministro Marco Aurélio Melo, destacou que, eventual opção pela criminalização de condutas motivadas pela
“orientação sexual e/ou identidade de gênero, real ou suposta, da vítima” haveria de se dar na esfera própria, em
outra parte da Praça dos Três Poderes que não o Plenário do Supremo, não podendo, possível omissão, ser
suplantada por exegese extensiva da legislação em vigor. Por esta razão, e ante os limites impostos ao exercício,
pelo Supremo, da jurisdição constitucional, divergiu dos Relatores para inadmitir o mandado de injunção e,
admitindo em parte a ação direta, julgar, nessa extensão, improcedente o pleito, deixando de reconhecer omissão
legislativa quanto à criminalização específica da homofobia e da transfobia.
Diante de toda a fundamentação o Supremo Tribunal Federal decidiu por dar provimento a demanda promovida
pela Associação Brasileira de Gays, Lésbicas e Transgêneros ABGLT, para (i) reconhecer a mora
inconstitucional do Congresso Nacional e; (ii) aplicar, com efeitos prospectivos, até que o Congresso Nacional
venha a legislar a respeito, a Lei 7.716/1989 a fim de estender a tipificação prevista para os crimes resultantes de
discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional à discriminação por orientação
sexual ou identidade de gênero.
5. Jurisprudência citada
Brasil, Supremo Tribunal Federal, Ação Direta de Inconstitucionalidade 4.277, 13 de outubro de
2011
Brasil, Supremo Tribunal Federal, Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 291, 10
de maio de 2016
Brasil, Supremo Tribunal Federal, Ação Direta de Inconstitucionalidade 4.275, 01 de março de 2018
Brasil, Supremo Tribunal Federal, Habeas Corpus 104.410, 26 de março de 2012
6. Palavras-chaves
Discriminação por orientação sexual ou identidade de gênero
LGBTI
Direito à liberdade de orientação sexual
Criminalização da discriminação
Dignidade da pessoa humana

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