Brasil, Supremo Tribunal Federal, Ação Direta de Inconstitucionalidade 3.239, 08 de fevereiro de 2018

JurisdictionBrasil
Subject MatterQuilombos,Direito Fundamental,Critério de identificação,Auto atribuição,Propriedade coletiva,Desapropriação
1. Identificação da sentença
Brasil, Supremo Tribunal Federal, Ação Direta de Inconstitucionalidade 3.239, 08 de fevereiro de 2018.
2. Resumo
O Supremo Tribunal Federal julgou improcedente, por maioria de votos, a demanda promovida pelo Partido
Democrata - DEM, e declararou constitucionais todos os artigos do Decreto n°. 4.887, de 20 de novembro de
2003, que “regulamenta o procedimento para identificação reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação
das terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos de que trata o artigo 68 do Ato das
Disposições Constitucionais Transitórias.”. O Tribunal entendeu que é a própria Constituição que confere aos
quilombolas o direito fundamental às suas terras e que a auto atribuição é critério suficiente para fazer uso de tais
direitos, de acordo com estudos antropológicos sobre o tema.
3. Fatos
O Partido Democrata - DEM formalizou a Ação Direta de Inconstitucionalidade, em face do Decreto n°. 4.887,
de 20 de novembro de 2003, que “regulamenta o procedimento para identificação reconhecimento, delimitação,
demarcação e titulação das terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos de que trata o
artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias.” Sustenta o autor, em síntese, que o decreto
impugnado invade a esfera da lei, cria nova modalidade de desapropriação, resume a identificação dos
remanescentes das comunidades quilombolas ao critério da auto atribuição e sujeita a delimitação das terras a
serem tituladas aos indicativos fornecidos pelos próprios interessados. Assim, busca conferir interpretação
conforme a Constituição Federal aos referidos dispositivos.
O Presidente da República informou defendendo a constitucionalidade do Decreto, alegando, em síntese, que o
critério de identificação por auto atribuição, já que este é contrabalanceado pelas competências do INCRA (artigo
3º), da Fundação Palmares (artigos. 3º e 4º), Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial,
da Presidência da República e Ministério do Desenvolvimento Agrário, além de ter recepcionado o critério da
consciência, como critério fundamental para determinação da identidade indígena e tribal, do Decreto nº. 5.051,
de 19 de abril de 2004, que promulgou a Convenção nº. 169 da Organização Internacional do Trabalho OIT,
sobre Povos Indígenas e Tribais, que o artigo 68 do ADCT cria novo instituto jurídico (a propriedade especial
quilombola), que deve ser compreendido com as devidas distinções dos topois orientadores da propriedade
individual, que pouco importa a distinção entre remanescentes e descendentes e que a desapropriação prevista
pelo Decreto é constitucional, pois corresponde a um resgate da expropriação sofrida pelos quilombos, assim, de
nada adianta reconhecer títulos de propriedade de terras para essas comunidades, se dentro da circunscrição
espacial esses mesmos grupos étnicos não tiverem condições de se desenvolver, preservando sua identidade.
De igual modo, a Procuradoria-Geral da República acompanhou a manifestação do Presidente da República.
Arguiu que inexiste inconstitucionalidade formal do Decreto e que a desapropriação é ato que se faz necessário,
ademais, argumentou que, conforme estudos antropológicos, o critério da auto atribuição para a identificação das
comunidades quilombolas é adequado. O Supremo Tribunal Federal julgou improcedente, por maioria de votos,
a demanda promovida pelo Partido Democrata - DEM, e declarou constitucionais todos os artigos do Decreto n°.
4.887, de 20 de novembro de 2003, que “regulamenta o procedimento para identificação reconhecimento,
delimitação, demarcação e titulação das terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos de
que trata o artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias.”
4. Decisão
O Supremo Tribunal Federal teve que determinar se o Decreto n°. 4.887, de 20 de novembro de 2003, que
“regulamenta o procedimento para identificação reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das terras
ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos de que trata o art. 68 do Ato das Disposições
Constitucionais Transitórias.”, estaria, ou não, revestido de constitucionalidade.
A Relatora do acórdão, Ministra Rosa Weber, iniciou seu voto julgando constitucional o Decreto. A Ministra
aduziu que não houve invasão da esfera reservada a lei, na medida em que, o texto do art. 68 da ADCT não
unívoco e não cuida de norma veiculadora de preceito genérico, assim o dispositivo trata-se, na realidade, de
norma definidora de direito fundamental de grupo étnico-racial minoritário, dotada, portanto, de eficácia plena
e aplicação imediata, e assim exercitável, o direito subjetivo nela assegurado, independentemente de integração
legislativa. Destarte, o direito fundamental presente no art. 68 do ADCT em absoluto demanda do Estado
delimitação legislativa, e sim organização de estrutura administrativa apta a viabilizar a sua fruição. A dimensão
objetiva do direito fundamental que o preceito enuncia, impõe ao Estado o dever de tutela observância e
proteção , e não o dever de conformação. Conclui ser obrigação do Estado agir positivamente para alcançar o
resultado pretendido pela Constituição, ora por medidas legislativas, ora por políticas e programas implementados
pelo Executivo, desde que apropriados e bem direcionados. No contexto dos direitos fundamentais
compreendidos como um sistema, é exigência constitucional que “para serem razoáveis, medidas não podem
deixar de considerar o grau e a extensão da privação do direito que elas se empenham em realizar”, conforme
assentou a Corte Constitucional da África do Sul no julgamento do caso Governo da República da África do Sul
e outros vs. Irene Grootboom e outros
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.
Passou a Magistrada a análise dos pedidos de declaração de inconstitucionalidade material dos arts. 2º, § 1º, 2º e
3º, e 13, caput e § 2º, do Decreto 4.887/2003.
Quanto ao critério de identificação (art. 2º, caput e § 1º, do Decreto 4.887/2003) julgou que o fenômeno
quilombola é dotado de heterogeneidade, quanto aos quilombolas atuais a que se refere o Decreto, aduziu que
não é possível chegar a um significado de quilombo dotado de rigidez absoluta, tampouco se pode afirmar que o
conceito vertido no art. 68 do ADCT alcança toda e qualquer comunidade rural predominantemente
afrodescendente sem qualquer vinculação histórica ao uso linguístico desse vocábulo. Quilombo, afinal, descreve
um fenômeno objetivo ainda que de imprecisa definição-, do qual não pode ser apartado. De tal modo, ao
assegurar aos remanescentes das comunidades quilombolas a posse das terras por eles ocupadas desde tempos
coloniais ou imperiais, a Constituição brasileira reconhece-os como unidades dotadas de identidade étnico-
cultural distintiva, equiparando a proteção que merecem à dispensada aos povos indígenas. Nesse contexto, a
eleição do critério da auto atribuição não é arbitrário, tampouco desfundamentado ou viciado. Além de consistir
em método autorizado pela antropologia contemporânea, estampa uma opção de política pública legitimada pela
Carta da República, na medida em que visa à interrupção do processo de negação sistemática da própria
identidade aos grupos marginalizados, este uma injustiça em si mesmo. Destacou que o Estado brasileiro
incorporou a seu direito interno da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho OIT sobre Povos
Indígenas e Tribais, de 27.6.1989, aprovada pelo Decreto Legislativo 143/2002 e ratificada pelo Decreto
5.051/2004. que consagrou a "consciência da própria identidade" como critério para determinar os grupos
tradicionais indígenas ou tribais aos quais aplicável, enunciando que nenhum Estado tem o direito de negar a
identidade de um povo indígena ou tribal que se reconheça como tal. Ao fim, concluiu que a autodefinição da
comunidade como quilombola é atestada por certidão emitida pela Fundação Cultural Palmares, nos termos do
art. 2°, III, da Lei 7.668/1988, de modo a fortificá-la.
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Corte Constitucional da África do Sul. Governo da República da África do Sul e outros Vs. Irene Groothbo om e outros. 2000.
Em relação ao art. 2º, §§ 2º e 3º, relativo às terras ocupadas por remanescentes das comunidades quilombolas,
julgou que ele também estaria revestido de constitucionalidade. Isso porque, não cuida, o Decreto 4.887/2003, da
apropriação individual pelos integrantes da comunidade, e sim da formalização da propriedade coletiva das
terras, atribuída à unidade sociocultural e, para os efeitos específicos, entidade jurídica que é a comunidade
quilombola. O título emitido é coletivo, pró-indiviso e em nome das associações que legalmente representam as
comunidades quilombolas. Nesse sentido, o Supremo
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, relativamente aos direitos dos povos indígenas sobre as
terras por eles tradicionalmente ocupadas, se referiu àquele tipo tradicional de posse como "um heterodoxo
instituto de Direito Constitucional, e não uma ortodoxa figura de Direito Civil". Destarte, o art. 2º, § 3º, do Decreto
4.887/2003, ao comandar sejam levados em consideração, na medição e demarcação das terras, os critérios de
territorialidade indicados pelos remanescentes das comunidades quilombolas, longe de submeter o procedimento
demarcatório ao arbítrio dos próprios interessados, positiva o devido processo legal na garantia de que as
comunidades interessadas tenham voz e sejam ouvidas.
Referente a adequação do instrumento da desapropriação (art. 13, caput e §2º, do Decreto 4.887/2003) ele
igualmente fora considerado constitucional. Isso porque, a ocupação posse conduz à propriedade, desde que
observadas as demais condições constantes do preceito. Reconhece-se o fato da ocupação tradicional, com as
relações territoriais específicas que lhe são inerentes, como constitutivo da propriedade e do domínio e, em vista
disso, se procede a titulação, formalizando a situação fundiária. É a própria Constituição, por meio do art. 68 da
ADCT, o nascedouro do título, ao outorgar, aos remanescentes de quilombos, a propriedade das terras por eles
ocupadas. Compreendida a norma constitucional transitória como veiculadora de direito fundamental de uma
população vulnerável e uma vez atrelado a esse direito o estabelecimento, pelo legislador constituinte, de política
pública voltada ao resgate dos direitos dessa população agora reconhecidos, mas até então sistematicamente
recusados , a responsabilidade pela respectiva implementação não pode recair somente nos ombros dos eventuais
detentores de título de propriedade sobre terras quilombolas.
A Ministra votou, então, pela improcedência do pedido, julgando que o Decreto nº 4.887/03 não possuir vícios
materiais ou formais.
Por outro lado, o Relator da ADI, Ministro Cezar Peluso, arguiu que a ação deveria ser julgada procedente para
declarar a inconstitucionalidade do Decreto nº 4.887/03, ao considerar que quem deveria ter atuado no caso era
o legislativo, assim, para o Ministro, o Decreto padece de inconstitucionalidade formal, por ofensa aos princípios
da legalidade e da reserva de lei, ao entendimento de que o art. 68 do ADCT, necessariamente, “há de ser
complementado por lei em sentido formal” e de inconstitucionalidade material em seus arts. 2º, §§ 1º, 2º e 3º, 7º,
§ 2º, 9º, 13 e 17. Os Ministros Dias Toffoli e Gilmar Mendes também foram vencidos, por consideraram que
certos dispositivos do Decreto mereciam receber interpretação conforme à Constituição.
Os demais Ministros votaram com a Ministra Rosa Weber nos termos de seu voto.
Diante de toda a fundamentação o Supremo Tribunal Federal decidiu por negar provimento a demanda promovida
pelo Partido Democratas DEM, no sentido declarar constitucional todos os artigos Decreto n°. 4.887, de 20 de
novembro de 2003, que “regulamenta o procedimento para identificação reconhecimento, delimitação,
demarcação e titulação das terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos de que trata o art.
68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias.”,
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Brasil. Supremo Tribunal Federal. Embargos de Declaração na Petição 3.388. 23 de outubro de 2013.
5. Jurisprudência citada
Corte Constitucional da África do Sul. Governo da República da África do Sul e outros Vs. Irene
Groothboom e outros. 2000.
Brasil. Supremo Tribunal Federal. Embargos de Declaração na Petição 3.388. 23 de outubro de 2013.
6. Palavras-chaves
Quilombos
Direito Fundamental
Critério de identificação
Auto atribuição
Propriedade coletiva
Desapropriação

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