Análise crítica dos casos brasileiros Damião Ximenes Lopes e Gilson Nogueira de Carvalho na Corte Interamericana de Direitos Humanos

AuthorAndré de Carvalho Ramos
PositionLivre-docente Doutor em Direito Internacional pela Faculdade de Direito da USP - Professor Doutor da Universidade - Bandeirante de Sío Paulo - Procurador Regional da República
Pages10-31

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Introdução

O Direito Internacional dos Direitos Humanos consiste no conjunto de direitos e faculdades previsto em normas internacionais, que assegura a dignidade da pessoa humana e beneficia-se de garantias internacionais institucionalizadas.2

Sua evolução nessas últimas décadas é impressionante. Desde a Carta de São Francisco de 1945 e a Declaração Universal de Direitos Humanos de 1948, dezenas de tratados e convenções consagraram a preocupação internacional com a proteção de direitos de todos os indivíduos, sem distinção.3 Consequentemente, eventual alegação de "competência exclusiva dos Estados" ou mesmo de "violação da sagrada soberania estatal" no domínio da proteção dos direitos humanos encontra-se ultrapassada, após anos de aquiescência pelos Estados, inclusive o Brasil, da normalização internacional sobre a matéria.4

Retrato acabado desta situação de internacionalização da temática dos direitos humanos é a crescente adesão dos Estados a mecanismos internacionais judiciais ou quase-judiciais, que analisam petições de vítimas de violação de direitos humanos, interpretam o direito envolvido e determinam reparações adequadas, que devem ser cumpridas pelo Estado. O Brasil, por razões que o espaço não permite que sejam aqui debatidas5, é um dos Estados que aderiu a tais mecanismos internacionais de proteção de direitos humanos, entre eles o chamado sistema interamericana dePage 11direitos humanos, no qual atua a Corte Interamericana de Direitos Humano,

Neste artigo, analisaremos as duas primeiras sentenças contra o Brasil da Corte Interamericana de Direitos Humanos nos casos Damião Ximenes Lopes e Gilson Nogueira de Carvalho. Além da relevância da novidade, o estudo em conjunto das duas decisões é de interesse pela diversidade de resultados: no primeiro caso (Damião Ximenes Lopes), o Brasil foi severamente condenado; já no segundo caso, contrariando expectativas, o Brasil foi vitorioso.

Para tanto, abordaremos inicialmente e de modo conciso o funcionamento do sistema ínteramericano de proteção de direitos humanos, para que fique claro o papel de seus órgãos, seus poderes e missões.

Em seguida, estudaremos os dois casos já mencionados, Damião Ximenes Lopes e Gilson Nogueira de Carvalho, abordando os principais pontos das respectivas sentenças.

Após, analisaremos o estatuto normativo interno da Convenção Americana de Direitos Humanos e das ordens exaradas pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, tudo à luz da novel Emenda Constitucional n° 45.

Ainda, verificaremos como é possível ser realizada a implementação das sentenças da Corte interamericana de Direitos Humanos, com realce para as obrigações estabelecidas na sentença do caso Damião Ximenes Lopes.

A título de conclusão, enfatizaremos a importância do Direito Internacional dos Direitos Humanos e a necessidade de que seja facilitada a implementação doméstica das decisões da Corte Interamericana de Direitos Humanos.

1. A mecânica do sistema interamericano de direitos humanos: o papel da Corte de San Jose

Há quatro diplomas normativos principais que compõem o chamado "sistema interamericano de direitos humanos": a Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem (1948), a Carta da Organização dos Estados Americanos (1948), a Convenção Americana de Direitos Humanos (1969) e também o Protocolo de San Salvador, assinado em 1988, relativo aos direitos sociais e econômicos.

No que tange ao presente artigo, vê-se que a Convenção Americana de Direitos Humanos foi assinada em San José, Gosta Rica, em 1969, no seio de Conferência Especializada deDireitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (OEA), mas entrou em vigor apenas em 1978. Este tratado, conhecido também como Pacto de San José, é hoje o principal diploma de proteção dos direitos humanos nas Américas por vários motivos: 1) pela abrangência geográfica, uma vez que conta com 24 Estados signatários; 2) pelo catálogo de direitos civis e políticos e 3) pela estruturação de un sistema de supervisão e controle das obrigações assumidas pelos Estados, que conta inclusive com uma Corte de Direitos Humanos.

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Quanto à abrangência geográfica, vê-se que há 24 Estados-Partes da Convenção Americana de Direitos Humanos, a saber: Argentina, Barbados, Bolívia, Brasil Chile, Colômbia, Costa Rica, Dominica, Equador, El Salvador, Grenada, Guatemala, Haiti, Honduras, Jamaica, México, Nicarágua, Panamá, Paraguai, Peru, Republica Dominicana, Suriname, Uruguai e Venezuela.6 Dentre esses, 24 reconhecem a jurisdição obrigatória da Corte Interamericana de Direitos Humanos (não reconhecem a jurisdição: Dominica e Grenada),7

O Brasil incorporou definitivamente a Convenção Americana de Direitos Humanos pelo Decreto Presidencial n° 678 de 11 de novembro de 1992. Em 10 de dezembro de 1998, o Brasil depositou, junto ao Secretário-Geral da OEA, nota reconhecendo a jurisdição obrigatória da Corte interamericana de Direitos Humanos, obrigando-se, assim, a implementar suas decisões.

Quanto ao catálogo de direitos civis e políticos, cabe mencionar que os Estados, ao ratificarem a Convenção, assumem dois deveres principais: o dever de respeito e o dever de garantia.

O dever de respeito consiste em um comportamento negativo do Estado: não permitir que seus agentes e órgãos violem os direitos protegidos.

Já o dever de garantia concretiza um comportamento positivo do Estado: a adoção de todas as medidas necessárias para assegurar o gozo dos direitos e impedir que sejam violados. Caso a violação ainda assim ocorra, o dever de garantia acarreta a necessidade de investigação, persecução e punição dos autores da violação, bem como determinação de reparação às vítimas ou familiares. Esta punição dos autores de violação de direitos humanos, como veremos no caso Darníão Ximenes Lopes, gera um efeito dissuasório de novas condutas, sendo considerada uma garantia de nâo-repetição das violações de direitos humanos. Assim, transmite a mensagem de "ausência de impunidade" à toda sociedade, o que pode desestimular novas violações.

No que tange ao sistema de monitoramento do comportamento dos Estados previsto na Convenção Americana de Direitos Humanos, cabe mencionar que há dois órgãos de supervisão e controle: a Comissão interamericana de Direitos Humanos, órgão também da OEA (além de ser órgão da Convenção) e a Corte Interamericana de Direitos Humanos, com sede em San José da Costa Rica e órgão exclusivo da Convenção. Contudo, para que a Corte possa conhecer um caso dePage 13violação de direitos humanos é necessário que o Estado contratante da Convenção ainda reconheça expressamente sua jurisdição,

A Corte Interamericana de Direitos Humanos é a segunda Corte especializada em direitos humanos criada no Direito Internacional, tendo como predecessora apenas a Corte Europeia de Direitos Humanos. A Corte Interamericana só pode ser acionada (/ws standi) pelos Estados contratantes e pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos, que exerce a função similar a do Ministério Público brasileiro.

A vítima (ou seus representantes) possuí somente o direito de petição à Comissão Interamericana de Direitos Humanos. A Comissão analisa tanto a admissibilidade da demanda (há requisitos de admissibilidade, entre eles, o esgotamento prévio dos recursos internos) quanto seu mérito. Caso a Comissão arquive o caso (demanda inadmissível, ou quanto ao mérito, infundada) não há recurso disponível à vítima. Pode também a Comissão propor as partes (Estado e vítimas) uma solução amistosa da controvérsia, devendo zelar, contudo, que a vítima de violação de direitos humanos não tenha seus direitos amesquinhados no futuro acordo. Caso não ocorra solução amistosa e a Comissão entenda que houve violação de direitos humanos, há a adoção do chamado Primeiro Relatório ou Informe (confidencial), no qual se sugerem as medidas de reparação a serem adotadas pelo Estado infrator.

Caso o...

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