Direito e Transnacionalidade: Aspectos Destacados para uma Fundamentação Teórica a partir do Pensamento de Boaventura de Sousa Santos

AuthorIsaac Sabbá Guimarães - Sérgio Ricardo Fernandes de Aquino

    O movimento democrático transnacional é o único sinal de esperança na luta contra a iniqüidade do mundo em que vivemos.

Boaventura de Sousa Santos 1

Isaac Sabbá Guimarães: O autor é Mestre em Direito pela Universidade de Coimbra e Doutorando pela Universidade do Vale do Itajaí - UNIVALI. O presente artigo é o resultado das investigações mediadas nas aulas de Direito e Transnacionalidade, dirigidas pelo Professor Doutor Paulo Márcio Cruz, no semestre 2009/I, no Curso de Doutorado em Ciência Jurídica da Universidade do Vale do Itajaí - UNIVALI.

Sérgio Ricardo Fernandes de Aquino: Doutorando e Mestre em Ciência Jurídica pela Universidade do Vale do Itajaí - UNIVALI. Especialista em Administração pela Universidade Independente de Lisboa - UNI. Integrante do Grupo de Pesquisa do CPCJ/UNIVALI: Fundamentos Axiológicos da Produção do Direito. Professor do Instituto de Ensino Superior da Grande Florianópolis – IES, da Associação de Ensino Superior de Santa Catarina – ASSESC, da Faculdade Santa Catarina – FASC e do Centro Universitário de Brusque - UNIFEBE.

Introdução

O fenômeno da Transnacionalidade sugere a percepção de novoas posturas mundiais que aparecem a fim de se solucionar, adequadamente, as questões de caráter coletivo que são esquecidas nas dimensões nacionais.

Proteger essas manifestações que se esforçam em manter padrões mínimos à vida é tarefa do Direito que não se reduz à Norma Jurídica impositiva do Estado-Nação. Ao contrário, esse fenômeno abre-se à cultura planetária para perceber sua função diante dos novos anseios populares. Direito e Transnacionalidade surgem como expressões de outro tempo no qual aparece diante da humanidade.

Refletir sobre esses dois pólos requer um compromisso epistemológico no qual represente as manifestações da vida de todos os dias e inaugure um paradigma científico que não se torna deificado, mas pretende dialogar por essas mudanças o seu objeto de estudo a fim de registrar a importância desses eventos humanos.

As novas posturas que surgem dessas experiências consolidarão outras identificações culturais para se promover um cenário de paz e assegurar uma vida qualitativa que não se fundamente, exclusivamente, nos critérios econômicos, tais como se percebeu – e para alguns se viveu – no Século XX.

O critério metodológico utilizado para a investigação desse artigo e a base lógica do relato de seus resultados4 reside no Método Indutivo. Na fase de Tratamento dos Dados5, utilizou-se o Método Cartesiano6 para se propiciar indagações sobre o tema e a necessidade de se (re)pensar as relações entre as categorias Direito e Transnacionalidade. As técnicas utilizadas nesse estudo são a Pesquisa Bibliográfica7, a Categoria8 e o Conceito Operacional9.

Para fins deste estudo, os pesquisadores buscaram outros autores para elucidar categorias relevantes, tais como Estado, Globalização Econômica, Fraternidade, Cartografia, entre outros. Essa investigação sugere o diálogo entre os ramos do Conhecimento Científico e o Direito a fim de se compreender a multiplicidade de interações nos quais emerge dos fenômenos humanos e consolida os estudos interdisciplinares.

1 Do Estado como unidade política à transnacionalidade: uma tentativa de compreensão dos novos paradigmas político-jurídicos

Tão difícil quanto a localização de um marco histórico em que se deu o advento do Estado é sua categorização ao longo dos tempos segundo os elementos conceituais normalmente utilizáveis por teóricos do Estado, cientistas políticos e constitucionalistas. Isto embora já se tenha alguma noção desse fenômeno sócio-cultural-político desde a mais longínqua antiguidade. Afinal, as civilizações que formam o tronco comum ocidental, a grega, a romana10 e a judaica, já discerniam as questões fundamentais em torno da idéia de organicidade política.

Platão trata na obra A República sobre uma pólis rigidamente estruturada em funções, governada pelo sofiocrata, o rei filósofo. Aristóteles, percorrendo outros métodos, descreve em A Política não só as funções dos organismos sociais, como, num experimento sociológico, descreve as partes integrantes da pólis, devidamente constituídas visando à satisfação dos interesses do homem, aqui sempre visto de forma absolutamente diferente dos animais, com aparato instintivo, e dos deuses, que vivem em outro nível de realidade (a transcendental), mas, tout court, o homem zoón politikón; permitindo já que entendamos que o mundo helênico conhecia as idéias de organização política – e seu derivado, o poder político – e de povo11.

Mais ou menos o que se observará entre os judeus dos templos bíblicos, que criaram uma teocracia democrática12, arrimada, por um lado, na mística de que a Divindade proveu Seu povo de uma Terra Santa, no qual todos deveriam obediência à Sua autoridade e, por outro lado, que deveriam ter seu governo terrenal (embora, também, através da providência divina); é em Deuteronômio, 17, 14-15, que lemos: Quando fores à terra que o Eterno, teu Deus, te dá, e a herdares e nela habitares, e disseres: ‘Porei sobre mim um rei, como o fazem todas as nações que estão ao redor de mim’ – certamente poderás pôr sobre ti o rei que o Eterno, teu Deus, escolher 13.

Já os romanos, ao sistematizarem seu direito, concebido como elemento de preservação da pax publica14, viram na efetiva participação do povo na coisa pública, na res-publica, uma forma virtuosa para a concretização do poder político, o elemento seminal para a idéia de soberania democrática15. E é em torno deste elemento que o problema do Estado se desenvolverá, desde uma sua concepção personalista, como depreendemos de Bodin, ao tempo do ancien régime, até chegarmos aos arranjos conceituais dos contratualistas do século XVIII16.

É também partindo desta questão problemática que as teses unitárias tomam o Estado como realidade política só após a Idade Média, quando os vínculos culturais e políticos são de tal forma bem estruturados que as fontes policêntricas de poder são substituídas pela idéia de autodeterminação político-jurídica17, que virá a ser uma das expressões modernas de soberania. As fontes morais do corpo social dão lugar à ragione di Stato, implicitamente preconizada por Maquiavel em seu O príncipe; e o povo, o elemento formador do Estado e do qual deriva o poder político, organizar-se-á segundo um conjunto de interesses consensuais, dando-lhe direção, iniludivelmente como no sistema histórico orteguiano, em que se parte de todo o acervo de experiências que se interligará às perspectivações para o futuro.

Se esta noção mais bem formulada acerca do Estado – como unidade política ou, tout court, sua denominação de Estado-nação, cujo momento embrionário será localizado na Renascença, distendendo-se pelo período em que vão surgindo os modernos Estados europeus pautados em territórios delimitados e com poder central, passa pela independência norte-americana e vai até a primeira metade do século XX, quando ocorre a criação do Estado de Israel, um dos mais emblemáticos fenômenos políticos arrimado na idéia de nação.

Por fim, na guerra fria, cria-se a cristalização da atitude isolacionista dos Estados – é a que mais vivamente permaneceu entre estudiosos, uma abertura cosmopolita que se tem verificado desde os anos 90, especialmente intensificada com a queda do muro de Berlim, com o fim do bloco dos Estados socialistas soviéticos e com a materialização do Tratado de Maasticht, tem gerado um estranhamento, já que o fenômeno – ou o sistema fenomênico – é representado – e largamente teorizado – como a crise conceitual e estrutural do Estado. Tentemos melhor entender isto através do exame da mudança de paradigmas.

1. 1 Estado como idéia de unidade

É já com Maquiavel que as primeiras idéias de nacionalismo aparecem tendentes a forjar uma Itália unificada e estável, o que influenciará politólogos e a própria experiência política de toda a Idade Moderna18.

Mas, é a partir do século XVII que o sistema de organização política feudal, marcado pelo policentrismo e fragmentariedade do poder, vai sendo pouco a pouco substituído por uma prática política com governo central, dando substância ao Estado integral. Cruz, ao tratar de uma tipologia dos Estados, refere que:

[...] o Estado que se consolida no século XVII, e que em alguns aspectos responde pelo seu conceito atual, aparece quando a comunidade política se define, fundamentalmente, em função da sujeição comum a um poder político, que exerce sua autoridade em um determinado âmbito e sobre todos aqueles que se situem nele [...]19.

Mais tarde, ao longo do século XIX, sob os influxos do sociologismo, as idéias nacionais dão força a uma justificação do Estado como unidade constituída a partir do que Heller, em sua Teoria do Estado, chamou de agrupamentos de vontades ou de unidades coletivas de ação, que se expressam formando o poder político20, mas têm nos traços culturais comuns (idioma, costumes cristalizados pela traditio ao longo dos tempos, entre outros), seu verdadeiro êmulo.

Em obra anterior, As idéias políticas contemporâneas, Heller parece mais enfático com relação ao tratamento do tema, referindo que A idéia nacional é a justificação do Estado pelo povo individualizado numa comunidade de cultura21.

O entendimento da Sociedade como...

To continue reading

Request your trial

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT