O trabalho Escravo à Luz das Convenções ns. 29 e 105 da Organização Internacional do Trabalho

AuthorIsabela Parelli Haddad Flaitt
ProfessionJuíza do trabalho do tribunal Regional do trabalho da 23ª Região. especialista em direito Público
Pages269-277

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I Introdução

A criação do direito do trabalho clássico, que se deu no início do Século XIX, está intimamente relacionada às desigualdades sociais, à própria evolução da sociedade mundial, bem como das modalidades de exploração do trabalho humano, explorações que desencadearam, à época, grandes reivindicações dos trabalhadores.

A escravidão se constitui na primeira modalidade de trabalho humano, sendo substituído pela servidão e pelas corporações de ofício, quando a prestação de serviços era somente manual, até o surgimento da prestação de trabalho pessoal e subordinado, vigorante em nosso país a partir da Revolução industrial, quando as máquinas começaram a substituir a mão de obra exclusivamente humana.

Em razão da evolução da sociedade, portanto, bem como do surgimento dos direitos Humanos, primordialmente a primazia da proteção do ser humano e de sua dignidade, direitos Fundamentais que foram nascendo como fruto das diversas situações desumanas que ocorreram no Mundo, como as guerras Mundiais e os ataques nazistas, o trabalho escravo foi abolido formalmente em diversos países.

No brasil, a abolição da escravidão clássica ocorreu por meio da lei áurea em 13 de maio de 1888, quando a Princesa isabel declarou oficialmente extinta a escravidão em nosso país1.

Entretanto, em que pese a abolição formal do trabalho escravo, ainda que diversa daquela forma de escravidão do passado, diversas modalidades de trabalho forçado (ou degradante) continuam sendo praticadas de forma dissimulada no brasil e no Mundo, principal-mente em países onde a democracia ainda é frágil, sendo chamadas pela doutrina de trabalho escravo contemporâneo, neoescravidão, trabalho forçado, trabalho degra-dante, ou trabalho em condições análogas às condições de escravo.

Tais modalidades de trabalho forçado são consequências lógicas da globalização, que a cada dia transpassa, de forma desenfreada, as barreiras entre os países, da concorrência desleal, em razão da competição entre os países social e economicamente desiguais, dentre outros fatores que ensejam a precarização do trabalho humano e do próprio ser humano, que passa a ser novamente um objeto de trabalho, tal como era nos primórdios das relações pessoais de trabalho (escravidão clássica) , sendo tratado como mercadoria.

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Essas formas modernas de escravidão, embora não sejam realizadas explicitamente, mas sim de forma simulada, se constituem em modalidades de superexploração do trabalho humano, acarretando a indignidade das condições em que a prestação dos serviços é realizada2, podendo haver coações físicas, psicológicas e morais, como, por exemplo, ameaças de penalidades, servidão por dívidas com o patrão (truck system) , local de trabalho isolado e de difícil acesso, para dificultar as fugas das vítimas (locais sempre vigiados com vigilância ostensiva) .

Tais atitudes violam diretamente a dignidade humana do trabalhador e o valor social do trabalho, devendo ser buscada sua erradicação pelo Poder Público e por toda a sociedade, como forma de se conferir a máxima eficácia dos fundamentos da República Federativa brasileira, bem como buscar a paz social.

II As modalidades contemporâneas do trabalho escravo. conceitos nacionais e internacionais

A redução da pessoa à condição análoga à de escravo é atitude considerada cruel e desumana, sendo vedada tanto em âmbito interno como em âmbito internacional.

Em âmbito interno, a vedação do trabalho escravo emerge primordialmente de princípios nucleares do ordenamento Jurídico brasileiro, como o art. 1º, ii, iii e iv (que trazem os fundamentos da República Federativa brasileira - cidadania, dignidade, valor social do trabalho) , do art. 3º, i (igualdade, liberdade) , iii e iv, todos da Carta Magna, havendo outros dispositivos Constitucionais que também vedam a escravidão indiretamente (a título de exemplo, art. 5º, caput, que prevê o direito à liberdade; art. 5º, ii, iii, X, XIii, Xv, XXIII, Xlvi, Xlvii; art. 170, caput, incisos iii, vii e viii) 3.

Em âmbito internacional, está prevista a proibição do trabalho escravo em inúmeros tratados e Convenções internacionais, como, por exemplo, nas Convenções internacionais de 1926 e de 1956, que proíbem a servidão por dívidas, na declaração Universal dos direitos Humanos, nos Pactos internacionais de direitos Civis e Políticos e de direitos econômicos, Sociais e Culturais (Pactos de nova iorque - 1966) , Pacto de San Jose da Costa Rica, bem como nas Convenções da OIT n. 29, de 1930 (Convenção sobre o trabalho Forçado ou obrigatório, ratificada pelo brasil em 1957) , e n. 105, de 1957 (Convenção sobre a abolição do trabalho Forçado, ratificada pelo brasil em 1965) , dentre outros instrumentos internacionais.

Saliente-se que há pequenas distinções entre os conceitos legais e doutrinários em âmbito nacional ou internacional, devendo a neoescravidão ser examinada ao menos sob três aspectos: trabalho forçado, trabalho escravo e trabalho degradante.

No ordenamento Jurídico brasileiro (âmbito nacional) , a prática da neoescravidão é considerada crime, com previsão no art. 149 do CP, não havendo dispositivo na legislação trabalhista sobre o tema.

Prevê o art. 149 do CP, in verbis:

Art. 149. CP. Reduzir alguém a condição análoga à de escravo, quer submetendo-o a trabalhados forçados ou a jornada excessiva, quer sujeitando-o a condições degradantes de trabalho, quer restringindo, por qualquer meio, sua locomoção em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto.

Pena - reclusão, de 2 (dois) a 8 (OITo) anos, e multa, além da pena correspondente à violência.

§ 1º nas mesmas penas incorre quem:

I - cerceia o uso de qualquer meio de transporte por parte do trabalhador, com o fim de retê-lo no local de trabalho;

II - mantém vigilância ostensiva no local de trabalho ou se apodera de documentos ou objetos pessoais do trabalhador, com o fim de retê-lo no local de trabalho.

§ 2º a pena é aumentada de metade, se o crime é cometido:

I - contra criança ou adolescente;

II - por motivo de preconceito de raça, cor, etnia, religião ou origem.

Tal dispositivo detalha as condutas típicas que se consideram condições análogas às de escravo, podendo ser dividido o gênero trabalho escravo (ou trabalho em condições análogas às de escravo, como expressamente tipificado na lei penal) em duas espécies, que são trabalho forçado e trabalho degradante.

O trabalho forçado se constitui em todas as hipóteses em que presente na prestação de serviços o fator de restrição da liberdade. Já o trabalho degradante, por sua vez, abrange o labor em condições indignas, como a jornada exaustiva, as condições precárias de higiene, segurança e saúde, ou qualquer hipótese de labor ou ambiente de trabalho aviltante em que não se exija a restrição da liberdade, embora, em certas ocasiões, possa estar presente, simultaneamente ao contingenciamento da liberdade, também essa característica.

Na visão clássica do ilustre luís antônio Camargo de Melo:

Considerar-se-á trabalho escravo ou forçado toda modalidade de exploração do trabalhador em que este esteja impedido, moral, psicológica e/ou fisicamente, de abandonar o serviço, no momento e

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pelas razões que entender apropriadas, a despeito de haver, inicialmente, ajustado livremente a prestação dos serviços.4

Já na concepção contemporânea de José Cláudio Monteiro de brito Filho:

Feita a análise, podemos definir trabalho em condições análogas à condição de escravo como o exercício do trabalho humano em que há restrição, em qualquer forma, à liberdade do trabalhador, e/ou quando não são respeitados os direitos mínimos para o resguardo da dignidade do trabalhador5.

Hodiernamente, portanto, podemos concluir que parte da doutrina defende que a restrição da liberdade, requisito imprescindível na concepção clássica de escravidão, não é fator determinante para a caracterização do trabalho escravo contemporâneo, o qual ocorre mesmo nas situações de trabalho degradante, sem o contingenciamento da liberdade ou, pelo menos, tendo esse elemento mitigado, já que o labor em situações degradantes é realizado por falta de opção do obreiro e não por livre e espontânea vontade (em razão, por exemplo, do alto índice de desemprego na localidade ou da ausência de empregos em melhores condições de dignidade) .

Por esta razão, entendo que está presente a "não voluntariedade" também em hipóteses de trabalho degradante, o que se assemelharia à restrição da liberdade do obreiro, ainda que não seja um contingenciamento direto e sob ameaças do patrão.

Nos termos do item 1 do art. 2º da Convenção n. 29 da OIT, "a expressão "trabalho forçado ou obrigatório" compreenderá todo trabalho ou serviço exigido de uma pessoa sob a ameaça de sanção e para o qual não se tenha oferecido espontaneamente".

Dessa forma, percebe-se que a característica nuclear do trabalho escravo contemporâneo continua sendo a não apresentação voluntária para realizar o serviço (ou não voluntariedade em permanecer no emprego, em face da situação degradante) . Isto é, em âmbito internacional, considera-se que trabalho escravo é sinônimo de trabalho forçado ou obrigatório (quando há restrição da liberdade do indivíduo) .

Já o item 2 do art. 2º da Convenção n. 29 enumera as hipóteses não consideradas como espécies de trabalho forçado ou obrigatório (trabalhos não considerados como análogos à escravidão, portanto) , in verbis:

  1. "a expressão "trabalho forçado ou obrigatório" não compreenderá, entretanto, para os fins desta Convenção:

  1. qualquer trabalho ou serviço exigido em virtude de leis do serviço militar obrigatório com referência a trabalhos de natureza puramente militar;

  1. qualquer trabalho ou serviço que faça parte...

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