Direito Internacional dos Refugiados: uma perspectiva brasileira

AuthorGilberto Marcos António Rodrigues
PositionProfessor Doutor dos Cursos de Graduação e Mestrado em Direito da Universidade Católica de Santos (UniSantos)- Pesquisador do Grupo de Análise de Prevenção de Conflitos Internacionaís-GAPCon/UCAM, no Rio de Janeiro.
Pages164-178

Page 164

O que é o Direito Internacional dos Refugiados? Que relação existe entre este Direito e a ONU? Quem é, ou pode ser, refugiado? Qual a importância desse tema no quadro do Direito Internacional dos Direitos Humanos na América Latina? Por que estudar a questão dos refugiados no, e a partir do, Brasil?

Tendo como referencial essas perguntas gerais, o texto pretende realizar um vôo panorâmico sobre uma das mais importantes e instigantes áreas do Direito Internacional Contemporâneo, cujo impacto se faz sentir, de forma crescente, no Brasil2.

A idéia de refugiado na história do Direito Internacional

O conceito técnico, específico de refugiado é uma criação recente do Direito Internacional, como se verá logo adiante. Mas a ideia geral, mais ampla, na acepção de proteção ao estrangeiro, é muito antiga e está associada à noção de asilo. A palavra, que provém do grego, ásylon, é um substantivo que significa, em sua forma figurada, amparo, proteção, lugar inviolável, de que derivou o vocábulo asylum, no latim, com sentido análogo, e deste para as línguas modernas.

Apartir da história ocidental, segundo lembrança de Guido Soares,"nas cidades gregas havia lugares sagrados dedicados aos deuses do Olimpo, com os templos e cemitérios, que podiam dar refúgio aos gregos perseguidos em quaisquer cidades... (raízes do atual instituto do asDo e do refúgio internacional)".3 Na Idade Média, os mosteiros (ou monastérios), verdadeiras cidadelas católicas com vida própria, concediam abrigo a perseguidos. Na Idade Moderna, a Constituição Francesa, de 1793, inaugurou a idéia de proteção ao estrangeiro no constitucionalismo. Mas foi na América do Sul que, por primeira vez, reconheceu-se, em norma convencional multilateral, a figura do asilo político, por meio do Tratado sobre Direito PenalPage 165Internacional) assinado em Montevidéu, em 23/01/18894,

O conceito de refugiado, tal como se conhece hoje, começou a delinear-se após a Primeira Guerra Mundial, com a criação da Sociedade das Nações (SDN)5. Para lidar com os milhares de deslocados da guerra, foi criado, no âmbito da SDN, o Alto Comissariado para Refugiados Russos, em 1921, com sede em Genebra, e para o seu exercício foi nomeado o norueguês Fridjof Nansen. Esse respeitado explorador polar, zoólogo e cientista, encarnou a figura de verdadeiro negociador e funcionário internacional, investido no cargo até a sua morte, em 1930. Sua contribuição para o Direito Internacional dos Refugiados (DIR) é considerada única, ideaiizador que foi de um documento expedido pela SDN que possibilitava ao refugiado6 residir e trabalhar fora de seu antigo país de origem; o denominado Passaporte Nansen, primeiro documento de cidadania expedido por uma organização internacional intergovernamental e, possivelmente, o único a ter o nome de uma pessoa (Nansen) em sua capa7. Devido à sua extraordinária atuação em prol dos refugiados, Nansen recebeu, em nome do Alto Comissariado, o Premio Nobel da Paz (1923).

A história do DIR ganhou forte impulso após o período de Nansen. A SDN criou o Nansen International Office for Refugees, que funcionou entre 1931 e 1938; foi substituído pelo Alto Comissariado da Sociedade das Nações para os Refugiados, criado em 1938; e, com a eclosão da Segunda Guerra Mundial, foi instituída, sob a égide dos EUA, a United Nations Relief and Rehabílitation Administration (UNRRA), em 19438, organismo que hoje atua, mas exclusivamente no atendimento a refugiados palestinos no Oriente Médio (Cisjordânia, Faixa de Gaza, Líbano, Jordânia e Síria), devido à reserva geográfica do Estatuto de 1951.

No imediato pós-Segunda Guerra Mundial, a Assembléia Geral da GNU, por meio de resolução de 15/12/1946, instituiu a Organização Internacional para os Refugiados que, devido à resistência de muitos países já no ambiente da Guerra Fria, não logrou ter mais do que 18 países membros é acabou não integrando o sistema da ONU. Nesse ínterim, a recém-instalada Comissão de Direito Internacional da ONU (CDI), em seu primeiro período de sessões, elaborou uma lista de catorze temas prioritários para codificação, sendo três deles relacionados aos refugiados: a nacionalidade, incluindo a condição de apátrida; o tratamento dado a estrangeiros; e o direito de asilo9.

De acordo com Guído Soares, para substituir a malograda Organização Internacional de Refugiados, "(...) em 3/12/1949, a AG da ONU, pela Resolução n° 319 (IV), denominada Refugiados e Pessoas Apátridas, proporia a Criação do Alio Comissariado das Nações Unidas para Refugiados, o ACNUR (...)"10. Pela Resolução 429 (V),de 14/12/1950, a Assembléia Geral da ONU convocou a Conferenciadas Nações Unidas de Plenipotenciários sobre o Estatuto dos Refugiados e Apátridas, que teria lugar no ano seguinte. Instalado em 1°/1/1951, em Genebra, o ACNUR, como agência da ONU, realizou o seguimento dos trabalhos preparatórios da Conferência que iria resultar no documento fundador do DIR.

O Estatuto do Refugiado de 1951 e o Protocolo de 1967

A Convenção de 1951, Relativa ao Estatuto dos Refugiados foi adotada em 28 de julho de 1951, como resultado da Conferência das Nações Unidas de Plenipotenciários sobre o Estatuto dos Refugiados e Apátridas, Em vigor desde 22/4/1954, conta com 144 Estados-partes11.

Com ela, a categoria jurídica internacional "refugiado" ganhou uma definição matricial, que se encontra no artigo 1o, parágrafo 1o; letra c) do Estatuto de 1951:

(...) que em consequência dos acontecimentos ocorridos antes de 1o de janeiro de 1951 e temendo ser perseguida por motivos de raça, religião, nacionalidade, grupo social ou opiniões políticas, se encontra fora do país de sua nacionalidade e que não pode ou, em virtude desse temor, não quer valer-se da proteção desse país, ou que, se não tem nacionalidade e se encontra fora do país no qual tinha sua residência habituai em consequência de tais acontecimentos, não pode ou, devido ao referido temor, não quer voltar a de. (...)12

O exame do Estatuto mostra que ele se aplica a indivíduos, e não a grupos, e tanto a nacionais de um país como apátridas. Também é fundamental verificar que o refúgio se diferencia, tecnicamente, do asilo - seja diplomático ou político/ territorial, tal como se desenvolveu na América Latina e Caribe e foi reconhecido no Caso Asylum (1951), da Corte internacional de Justiça13.

Page 167

Os fundamentos ou motivos que ensejam a concessão do refúgio são: 1) raça; 2) religião; 3) nacionalidade; 4) pertencimento a um grupo social; 5) opiniões políticas.

Do ponto de vista de sua vigência e aplicabilidade, o Estatuto de 1951 contém duas limitações importantes: geográfica e temporal, A geográfica limita sua abrangência a fatos ocorridos em território europeu; a temporal limita esses fatos ao período anterior a 1°/1/1951, data de instalação do ACNUR. Essas limitações devem ser compreendidas no contexto de criação do Estatuto de 1951: o principal teatro da Segunda Guerra Mundial fora a Europa e, a partir dela, desencadearam-se grandes deslocamentos de pessoas, milhares das quais se tornaram refugiados. Com o avançar dos anos, as guerras de independência na África e Ásia, no processo de descolonização, geraram novas demandas de refugiados, e então houve a necessidade de superar as limitações do Estatuto de 1951, Dessa forma, o Protocolo de 1967, Relativo ao Estatuto dos Refugiados, assinado em Nova Iorque, em 31/1/1967, teve como objetivo abolir tanto a limitação geográfica quanto a temporal. Em vigor desde 4/10/1967, o Protocolo Adicional tem 144 Estados-partes14,

O Direito Internacional dos Refugiados (DIR) a partir de suas fontes

Pode-se afirmar, assim, que o Direito Internacional dos Refugiados (DIR), em sua abrangência global, tem como fontes primárias o Estatuto de 1951 e o Protocolo Adicional de 1967, que consagram alguns princípios e diretrizes próprias do DIR. Essas fontes foram sendo enriquecidas com a atuação e a experiência do ACNUR15 - daí a relação estreita entre o DIR e a ONU - e os contextos regionais, como é o caso da América Latina e Caribe, como se verá em seguida.

O mais importante princípio do DIR é o do Non-Refoulement (Não-devolução para o Estado de origem), previsto no artigo 33 (Proibição de expulsar ou repelir) do Estatuto, e é considerado jus cogens — todos os países devem respeitar, independente de sua vinculaçâo convencional com o DIR16 Este princípio visa a proteger a vida do candidato a refúgio ou refugiado, posto que a devolução ou deportação a seu Estado significa, na maioria das vezes, o caminho para a tortura e a morte, O segundo princípio fundamental é o da igualdade jurídica do refugiado com o estrangeiro, ou seja, os países devem conferir ao refugiado o mesmo tratamento concedido ao estrangeiro residente em seu território, o que inclui o direito a uma identidade e autorização para trabalho, entre outras. Além disso, o DIR prevê a possibilidade de conceder proteção temporária, em casos de grandes fluxos de pessoas (sobretudo em áreas de fronteira), estabelecer políticas de assentamento (fixação de residência do refugiado numa cidade, num país)...

To continue reading

Request your trial

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT