A Problematização do Sistema Internacional de Proteção à Propriedade Intelectual frente às Novas Tecnologias de Transferência de Informação

AuthorPedro Ivo Ribeiro Diniz
PositionMembro do Centro de direito Internacional – CedIN, consultor do escritório Nemer Caldeira brant Advogados e membro do Grupo de Análise de Prevenção de Conflitos Internacionais – GAPCon.
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I - A problematização do Sistema de Proteção à Propriedade Intelectual

As teorias atuais em relação ao direito da Propriedade Intelectual se divergem em diversos aspectos, da justificativa de sua proteção2 até sua atual relevância frente aos avanços tecnológicos3. essas controvérsias refletem um sistema normativo de pro-Page 124teção igualmente contestado. As críticas tornam-se ainda mais contundentes, sob o prisma específico dos direitos relativos às inovações intangíveis.

No entanto, para uma análise coerente do problema acerca dos instrumentos de proteção à propriedade intelectual de bens imateriais, deve-se, primeiramente, abordar alguns pontos determinantes para a percepção da temática. destaca-se, nesse sentido: (i) o arcabouço jurisdicional que resguarda tais direitos, uma vez que a relação imprecisa entre instrumentos de natureza pública e privada é uma das principais causas das dificuldades relativas à aplicabilidade da norma; (ii) a diferenciação entre bens tangíveis e intangíveis, já que a atual estrutura de proteção não reserva a devida preocupação com as peculiaridade de cada objeto, aumentando as vicissitudes do sistema; e, por fim, (iii) as conseqüências dos avanços tecnológicos referentes aos meios de transferência de informação, em especial, o advento da internet, que agravou consideravelmente os entraves de um sistema jurídico questionável.

1. Proteção à Propriedade Intelectual: regência multi-jurisdicional

Enquanto a proteção da propriedade intelectual, inserida no arcabouço do direito do Comércio Internacional, representa um certo grau de coordenação multilateral, a aplicação ainda opera dentro do conceito de jurisdição territorial, termos nos quais tais direitos foram acordados.4 Isso significa que os principais meios de garantia do cumprimento de determinada norma (enforcement), no que tange à proteção internacional da propriedade intelectual, ainda é circunscrito aos estados domesticamente. Ademais, a determinação de que uma infração ocorreu dentro de certa jurisdição é algo que pode se tornar bastante complicado e controverso.5 “Uma atividade multi-jurisdicional, por definição, não pode ocorrer em um único território; a localização é simplesmente uma ficção legal necessária para selecionar uma legislação doméstica dentre duas ou mais.”6o resultado é o que Wendy Adams chama de “o vencedor leva tudo” (winner-take-all), uma vez que a legislação de um estado prevalece em detrimento não só dos demais sistemas normativos, como dos próprios interesses dos outros estados. “A adjudicação doméstica de uma disputa multi-jurisdicional não é necessariamente o veículo adequado para suprir a lacuna do direito Internacional Público.”7

Não obstante, instituições de direito Internacional Privado não possuem o formato necessário para o desafio de instituir regras neutras de coerção, nem de monitorar as relações em andamento de acordo com toda a extensão dos valores já difundidos e integrados ao regime de comércio global.8 A inadequação dos mecanismos do direito Privado para a tutela de direitos de natureza pública é, no entanto, apenas parte daPage 125questão. A relevância para a compreensão do problema desta relação instituída pelos acordos internacionais, atribuindo à esfera doméstica a principal responsabilidade de resguardar os direitos de propriedade intelectual é tamanha, que demanda um capítulo à parte, e será retomada adiante neste trabalho (II).

2. Distinção dos objetos tutelados

O principal instrumento internacional que rege o objeto em análise, o Acordo sobre Aspectos dos direitos de Propriedade Intelectual relacionados ao Comércio (TrIPS), distingue os diferentes objetos tutelados pelo documento, caracterizando as peculiaridades de cada um, ao balizar tópicos como direito do Autor e direitos Conexos, Marcas, Indicações Geográficas, desenhos Industriais, Patentes, entre outros.9 diante dessa descrição específica, torna-se nítida uma distinção entre os bens materiais e os ativos intangíveis tutelados. Contudo, o Acordo TrIPS não repete a mesma cautela ao identificar os fundamentos e os meios para assegurar a proteção destas figuras, abordando, assim, de forma generalizada os instrumentos de defesa em relação à propriedade intelectual.

Isto se justifica pela abordagem generalizada que o Acordo TrIPS estabelece em relação aos diversos formatos de propriedade intelectual. o sistema normativo internacional relativo à propriedade intelectual visa a proteção dos direitos daqueles que detém o domínio de bens intangíveis de maneira semelhante aos direitos de propriedade de ativos físicos.

Quando nos referimos aos direitos atribuídos aos autores e inventores de ativos inovadores, entende-se, de forma geral, que o titular tem resguardada a exclusividade de deliberar sobre seu uso, e nesse sentido, seus direitos de monopólio10 estão assegurados legalmente nos termos da proteção à propriedade intelectual. Tal posição se justifica na idéia de que esse poder privativo estimula o progresso científico e artístico11, uma vez que os criadores são titulares de um direito de exploração específico. em outras palavras, a proteção à propriedade intelectual promove um incentivo positivo ao avanço científico e artístico. 12

Considerando a aplicação de tal conceito em relação aos ativos materiais, um controle de imitações e cópias se torna relativamente plausível pelos meios de coerção e monitoramentos existentes, seja no âmbito doméstico (polícias, órgãos fiscalizadores), seja na esfera internacional (controle de fronteiras, acordos de cooperação), sob amparo, sobretudo, estatal13. Contudo, se aplicarmos esse mesmo conceito aos bens intangíveis, percebemos a problemática referente à generalização dos instrumentosPage 126protecionistas. esses ativos estão sujeitos à apropriação e imitação em larga escala, considerando os baixos custos de reprodução e disseminação. Ademais, os novos meios de transferências de informação tornam praticamente impossível o controle entre os limites territoriais dos estados. este último ponto merece ser discutido com maior cautela, e é este o tema da próxima seção.

3. O avanço tecnológico como agravante do problema

O cenário internacional atual caracteriza-se pela condição de que a maioria das criações humanas podem ser reproduzidas e distribuídas infinitamente sem custo algum. A experiência nos mostra que a internet elevou o nível de cópias exponencialmente, desde que a reprodução se tornou bem mais fácil com os novos instrumentos técnicos e, no mesmo sentido, as cópias se tornaram tão perfeitas quanto os originais. Na internet, a cópia pode tomar lugar de seu original de maneira quase imperceptível e sem custo para o copiador. Isso causou, inclusive, uma noção difundida mais branda no que tange à ilegalidade de tais atos. A consciência de que está se cometendo um crime ao reproduzir certos documentos é significativamente menor se comparado a outras condutas criminosas.14

Uma revolução dessa magnitude implica, obviamente, em transformações significativas no amparo aos direitos de criação. Alguns institutos tradicionais ainda são invocados no intuito de mitigar os impactos causados pela internet, como, por exemplo, o direito ao “monopólio”. A defesa do monopólio é amplamente aceito como instrumento fundamental dentro do estrutura normativa de proteção à propriedade intelectual, principalmente, nos países desenvolvidos. Com efeito, o direito ao monopólio é considerado, em termos econômicos, necessário para amenizar o problema de “falta de exclusividade e escassez inerente aos ativos intelectuais.”15

O direito ao monopólio visaria compensar, portanto, a “falta de exclusividade”, tendo em vista que as inovações de bens intangíveis estão mais propensas as imitações e cópias, principalmente, diante dos avanços tecnológicos dos últimos tempos. Portanto, esse material figuraria no mercado com um preço mais competitivo, dado que a cópia estaria isenta dos custos de pesquisa, desenvolvimento e reprodução. diante desse complexo cenário caracterizado, podemos, então, partir para uma abordagem analítica do problema do sistema normativo internacional de proteção à propriedade intelectual. Para tanto, faz-se necessário abordar alguns tópicos distintos, contudo, igualmente relevantes. A próxima seção (II) se dedica a um detalhamento do arcabouço normativo que tutela a temática em análise. A relação entre poderes e limites desses sistemas jurídicos, entre as esferas doméstica e internacional, evidencía as principais falhas de regulamentação da propriedade intelectual. Se o arcabouço normativo internacional não responde às demandas contemporâneas, a relevância dos acordos que regem a questão são colocados em xeque. É nesse sentido que a seção III aborda as hipóteses frente à crise de funcionalidade que enfrenta esse sistema jurídico.

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II- Arcabouço normativo de proteção à Propriedade Intelectual

Partindo do argumento de que a relação confusa e heterogênea dos sistemas jurídicos que tutelam os direitos de propriedade intelectual é, como afirmou-se, a principal causa da problema de regulação existente, esta seção irá se dedicar para a compreensão dessa dinâmica ineficiente. Nesse sentido, as estruturas internacionais (1) e domésticas (2) serão analisadas separadamente, destacando suas peculiaridades para, por fim, mostrar como o contrapeso entre os poderes e limites desses instrumentos culminam na incapacidade de enforcement ...

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