O princípio do ne bis in idem no direito penal internacional

AuthorCarlos Eduardo Adriano Japiassú
PositionProfesor Adjunto de Direito Penal da UERJ e da UERJ Professor do Programa de Mestrado um Direito da FDC, consultor do Fundo Monetário Internacional (FMI) e Secretario Geral Adjunto da Association Internationale de Droit Pénal.
Pages94-113

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I Explicação necessária

À Association Internationale de Droit Penal (AIDP), que era seu campo de estudo, consiste na mais importante associação científica em todo o mundo, realiza o seu congresso internacional a cada cinco anos. O último, o XVII Congresso Internacional de Direito Penal, ocorreu entre os dias 12 e 19 de setembro de 2004, em Pequim/ China.

Segundo a estrutura da AIDP, o congresso se divide em quatro seções temáticas, respectivamente: parte geral do direito pena!; parte especial do direito penal; direito processual penal; e direito penal internacional No XVII Congresso Internacional de Direito Penal, a Seção IV tratou do tema objeto do presente artigo.

A metodología proposta nos eventos da Associação pressupõe que os diversos Grupos Nacionais que a integram indiquem relatores para cada uma das seções temáticas, que deverão demonstrar, a partir de um questionário elaborado pelo relator geral da Seção, a situação do direito em seu Estado nacional, referente ao tema em debate.

O presente trabalho consiste em uma apresentação do tema, no relatório do Grupo Brasileiro sobre o tema do ne bis in idem, e que foi submetido à AIDP,2 e, ao fim, em anexo, as conclusões a que se chegou e que serão submetidas à Assembleia Geral das Nações Unidas, de que a Associação é órgão consultivo em matéria penal.

II Apresentação do tema

A concorrência entre as jurisdições penais, que ordinariamente tem sido tratada como assunto doméstico, tem se tornado um assunto de cunho transnacional, seja por força da mobilidade dos indivíduos no mundo globalizado, seja pela emergência de novas instituições penais internacionais, ou, ainda, pela extensão da competência nacional a crimes cometidos no exterior,3

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De uma maneira, na esfera interna, as regras de resolução dessa espécie de conflito se encontram estabelecidas. No que se refere a relações de direito internacional, todavia, tem apresentado diversos problemas, entre outras razões, por força do princípio da soberania estatal.

Diferentemente, o XVI Congresso Internacional de Direita Penal da AIDP, na resolução B.4, da Seção IV, seja no que se refere a um marco internacional ou transnacional, deveria ser contemplado como um direito humano4

O tema despertou tanto interesse que foram apresentados relatórios dos seguintes países: Alemanha, Argélia, Áustria, Bélgica, China, Finlândia, Eslovênia, Espanha, França, Grécia, Guiné, Indonésia, Itália, Japão, Holanda, PolÔnia, Rússia e Turquia, além de informes adicionais, um sob o prisma internacional e outro do ponto de vista europeu.5 Além disso, foi apresentada uma proposta específica que foi desenvolvida no prestigioso Max-Planck-Institut für auslãndisches und ínternaíionales Strafrecht, de Freiburg im Breisgau, Alemanha6.

Assim, concluiu-se que,a partir de uma perspectiva internacionale transnacional, o problema do ne bis in idem deveria ser apresentado em três aspectos, a saber:

1, a concorrência "horizontal (trans)nacional"; casos de concorrência entre jurisdições nacionais;

2, a "concorrência vertical": concorrência entre jurisdições nacionais e instituições internacionais competentes;

3, os casos de concorrência entre jurisdições internacionais: "concorrência horizontal inter(supra)nacional", devido à existência de tribunais penais internacionais ad hoc, como o para a antigo IugoslÁvia e o para Ruanda, e a criação do Tribunal Penai Internacional permanente.

Foi a partir desses três aspectos, que se desenvolveu o relatório brasileiro, bem como foram estruturadas as conclusões do Congresso em Pequim, e que será apresentado o presente trabalho.

III Ne bis in idem no âmbito (nacional) interno

Apesar de o princípio do bis in idem não estar previsto em nenhum diplomaPage 96legal interno sob esta denominação específica, sendo basicamente uma construção doutrinária, existem diversos dispositivos nos quais é possível observar sua influência.

Com efeito, há repercussões nas regras atinentes à aplicação dalei penal brasileira no espaço7 e na Lei n» 6.815/808 (Estatuto do Estrangeiro), podendo também ser observada sua aceitação nas disposições sobre individualização da pena9 (art. 59 e seguintes do Código Penal), assim como em construções doutrinárias, como as concernentes ao concurso aparente de normas,

Além disso, também se encontram referências ao princípio no Pacto de São José da Costa Rica (Convenção Americana sobre Direitos Humanos), em seu art. 8o, item 410; no art. 9o da Convenção Interamericana sobre Assistência Mútua em Matéria Penal11 (firmada pelo Brasil em 01/07/1994); art. VII, ìtem 1, da Convenção Interam erica na sobre o Cumprimento de Sentenças Penais no Exterior12, e, finalmente, no art, 20 do Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional, promulgado pelo Decreto n° 4.388/200213.

Seu fundamento reside na necessidade de segurança jurídica, como uma limitação ao poder punitivo estatal, considerando o caráter repressivo do Direito Penal, assim como na idéia de que a cada indivíduo será aplicada a sanção correspondente e suficiente para os seus atos (princípio da proporcionalidade).

No direito brasileiro, na expressão em exame, idem é entendido como o mesmo fato, em termos reais e históricos. Sua relevância, pois, decorre da análise factualPage 97e não estritamente jurídica. Entende-se, a título ilustrativo, que um indivíduo, absolvido por uma conduta dolosa, não poderá ser novamente julgado, pelo mesmo fato, por se alegar comportamento culposo.

Diferentemente, há julgado exarado pelo Supremo Tribunal Federal, que estabelece distinção entre fato real e fato juridicamente considerado.14 Em julgamento realizado pelo Tribunal do Júri do estado de Minas Gerais, um indivíduo foi absolvido, ocorrendo trânsito em julgado, da acusação de ter praticado homicídio como autor imediato. Contudo, o Ministério Público, não satisfeito, ofereceu nova denúncia, agora lhe imputando a conduta de autor intelectual do mesmo fato, o que foi aceito em segunda instância. Impetrado habeas corpus perante a Corte máxima do Judiciário brasileiro, entendeu-se que o fato principal não seria exatamente o mesmo, uma vez que a primeira sentença se ateve à análise do agente com conduta diversa da posteriormente apreciada.

Destarte, o art. 110, §2° combinado com os arts. 383 e 384, todos do Código de Processo Penal, deixam transparecer a prevalência dó fato em seu sentido real para efeito de análise, em detrimento de uma mera apreciação no significado jurídico-penal. Com efeito, o julgador não está adstrito à qualificação jurídica ofertada pelo membro do Ministério Público, tendo a possibilidade de realizar a análise do fato sob ótica diversa. Em outras palavras, vige a noção de que da me factum (...) ius.

De especial importância também se reveste a análise efetuada pelas regras concernentes ao conflito aparente de normas, no campo doutrinário, por meio dos princípios da especialidade, subsidiariedade e consunção. Desta forma, o indivíduo só poderá ser apenado pela prática de dois ilícitos, idênticos ou diversos, quando, mediante uma única conduta, der ensejo a mais de um resultado típico, como nas hipóteses de concurso formal de crimes.

Outrossim, um problema que também se coloca é o da aplicação do princípio entre os diferentes juízos existentes.

Em verdade, o Judiciário brasileiro é uno, havendo apenas repartição das competencias entre os diversos magistrados, como uma forma de conferir maior especialização às matérias a serem apreciadas.

Assim, há delitos cuja competência para julgamento pertence ao âmbito da Justiça Federal, seja a chamada Justiça "comum", a quem compete apreciar as matérias taxativamente previstas na Constituição Federal, sejam as Justiças "especializadas", assim consideradas as das Forças Armadas e a Eleitoral. Os demais crimes, não pertencentes ao rol constitucional, competem à Justiça Estadual.

No que tange aos Tribunais Superiores, impõe-se também uma distinção das competencias. Para a Justiça Federal "comum" e Justiça Estadual, as duas Cortes Supremas, denominadas Superior Tribunal de Justiça e Supremo Tribunal Federal, são passíveis de conhecer recursos ou habeas corpus delas provenientes. Atente-Page 98se, porém, que o Supremo Tribunal Federal constitui-se na instância máxima do Judiciário brasileiro.

Por outro lado, em seara das Justiças "especializadas" observa-se a criação de Tribunais Superiores próprios, o que, como já dito, se justifica pela especificidade das matérias em discussão. Assim, as Forças Armadas possuem um Superior Tribunal Militar, enquanto, no âmbito eleitoral, instituiu-se o Tribunal Superior Eleitoral. Todavia, ambos se encontram sob a jurisdição do Supremo Tribunal Federal.

Em assim sendo, se o mesmo fato, aparentemente, caracterizar crime no âmbito de matérias diversas, entre juizes penais com especializações distintas, deverão ser analisadas as especificidades da conduta praticada, tanto no aspecto objetivo quanto subjetivo, para que se determine qual a Justiça competente. Conseqüentemente, crimes militares delitos por militar, na forma do art, 9o do Código Penal Militar, serão de competência exclusiva das Forças Armadas para julgamento, ainda que haja tipos penais correspondentes na legislação criminal comum. O mesmo se diga para a Justiça Eleitoral e Justiça Comum Federal, impedindo-se, portanto, o...

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