Do oráculo da legalidade burguesa à vontade opaca do legislador: a certeza raptada pela linguagem descontrolada

AuthorPlínio Pacheco Oliveira
PositionBacharel em direito pela UFPE e mestrando em Direito pelo PPGD-UFPE. Bolsista CAPES
1. Introdução

As considerações a seguir buscarão abordar aspectos do contexto histórico do qual provém a perspectiva liberal de legalidade como instrumento para antever a ação estatal, além de lançar um olhar sobre caminhos da teoria da interpretação que se afastam de tal concepção de legalidade e de traçar algumas objeções à busca da vontade do legislador.

Assim, o texto será dividido em quatro tópicos. O primeiro será relativo à emergência da burguesia na Europa, o que deu lugar às idéias liberais e à perspectiva de legalidade que foi marcante no princípio do Estado de Direito. No segundo, buscando apontar a vagueza e ambigüidade que caracterizam qualquer texto (em maior ou menor grau), e em virtude da ênfase das teorias da interpretação contemporâneas na perspectiva pragmática acerca da linguagem, lançaremos um olhar sobre aspectos da filosofia da linguagem elaborada por Wittgenstein no livro "Investigações Filosóficas", um dos eixos da virada lingüística da filosofia do século XX. No terceiro ponto, serão observados caminhos de reconhecimento da incerteza da linguagem no âmbito do Direito. E, por fim, no quarto tópico, buscaremos indicar alguns problemas da perspectiva intencionalista quanto à interpretação de textos normativos.

2. Esboço sobre roteiros históricos nos quais floresce o liberalismo e sobre a idéia de lei como "oráculo" burguês

Na Baixa Idade Média, as estruturas sociais do feudalismo iniciaram o seu colapso, e foi observada a construção das bases de um novo sistema de produção na Europa ocidental. O renascimento comercial e o renascimento urbano foram sintomas de que a Europa despertava de seu sono feudal1. Para o universo do feudalismo, fundado na vida rural e numa economia concentrada no microcosmo representado pelo feudo, dotado de um alto grau de auto-suficiência, as cidades foram erguidas como símbolo do extraordinário. Neste sentido, comenta Le Goff acerca da cidade na Idade Média:

(...) se presentan ante todo como um fenómeno insólito y, para los hombres de la época del desarrollo urbano, como realidades nuevas en el sentido escandaloso que la Edad Media atribuye a este adjetivo. La ciudad, para esos hombres de la tierra, del bosque y de la landa, es a la vez un objeto de atracción y de repulsa, una tentación -como el metal, como el dinero, como la mujer2.

Entretanto, no século XIV, as maiores cidades da Europa - Paris, Florença e Veneza- tinham entre cinqüenta e cem mil habitantes, deslocando para atividades comerciais e artesanais cerca de metade da população3, já sendo expressos com nitidez os contornos do novo sistema de produção - o capitalismo.

Anteriormente, a partir do fim do século XI, foi iniciado o processo de formação das monarquias nacionais, no qual a burguesia desempenhou um importante papel, havendo a transformação dos cenários fragmentados do feudalismo em palcos de unidade política e territorial. Incapazes de dominar a cena política, a burguesia (que ainda se mostrava frágil) e a nobreza (enraizada no mundo feudal em decadência) se reuniram em torno da figura do monarca para estabelecer ou preservar suas condições e privilégios4.

Contudo, a partir do século XVI, tomando como ponto de partida as guerras civis religiosas posteriores à Reforma, as monarquias nacionais se consolidaram em Estado Absolutista, o qual triunfou por toda a Europa. Desse modo, sobre as bases da independência do poder do monarca e da ausência de controle de sua atividade por qualquer outro poder, o Absolutismo formou uma esfera de ação supra-religiosa, buscando a extinção ou neutralização de instituições autônomas, mas permanecendo ligado à divisão social estamental5.

Porém, o fim das agitações provocadas pelas guerras civis religiosas (como decorrência da ação pacificadora e da ordem jurídica supra-religiosa)6 dispôs o Regime Absolutista em um horizonte histórico distinto daquele que legitimou a sua ascensão e que era seu sustentáculo. Nesse contexto, o Iluminismo, sobre os alicerces da crença na razão e no progresso, se desdobra em atitudes críticas diante das instituições do Absolutismo (mesmo que não seja por caminhos evidentes).

Os burgueses, então, concentrando o poder econômico em uma Europa que já vivia um estágio desenvolvido do capitalismo, continuavam reduzidos à condição de súditos, sendo excluídos do poder político (restrito ao soberano e aos seus ministros) e submetidos a um espaço público que retirava das convicções privadas a sua repercussão política7. Nesse sentido, Hobbes bem expressou a condição do cidadão referindo que "a liberdade de um súdito reside apenas nas coisas que, ao regular suas ações, o soberano permitiu" ("The Liberty of a Subject, lyeth therefore only in those things, which in regulating their actions, the Soveraign hath praetermitted")8.

Ademais, o Regime Absolutista, de modo geral, mantinha uma série privilégios da nobreza, gerando tratamento desigual em relação às outras classes sociais. Na França do século XVIII, por exemplo, a nobreza, integrando a primeira ordem, tinha considerável favorecimento em relação às outras ordens, como a isenção de vários tributos e o recebimento de pensões dadas pelo Estado. Os nobres, por força da tradição, eram mesmo formalmente dissuadidos de exercer alguma profissão, e a burguesia se via desprestigiada por uma monarquia revestida por um caráter aristocrático e mesmo feudal9.

Em tal contexto histórico, o Estado Absolutista ainda impunha altas cargas tributárias (com exceção das impostas à nobreza), e entendia a economia sob uma concepção fortemente intervencionista. Tais aspectos foram vistos como limitadores do desenvolvimento do capitalismo10, sendo vetores da insatisfação burguesa e servindo de catapulta para as idéias liberais.

O liberalismo, entretanto, emerge como um complexo de idéias que atendem a anseios políticos e sociais da burguesia, se desdobrando em dois aspectos:

O primeiro é a construção de uma esfera de liberdade individual do cidadão, uma liberdade concebida em primeira linha como proteção de seus interesses primordiais - seus direitos inalienáveis- face à ação do Estado. O segundo é a idéia de contenção, de enquadramento da ação estatal por normas jurídicas11.

Dessa maneira, se no Absolutismo a consciência era a única instância livre para os súditos12, o Liberalismo firmou-se como proposta de projetar essa consciência para o espaço público, assegurando a sua expressão a partir da limitação do poder estatal. Assim, as idéias liberais representaram um dos fatores que deram forma às revoluções burguesas. Nesse sentido, comenta Hobsbawn a Revolução Francesa:

Todavia, um notável consenso sobre idéias gerais entre um grupo social bastante coerente deu ao movimento revolucionário unidade efetiva. O grupo era a "burguesia"; suas idéias eram aquelas do liberalismo clássico, tal como formuladas pelos "filósofos" e "economistas" e propagadas pela maçonaria em por associações informais. Nessa medida, os "filósofos" podem ser justamente responsabilizados pela Revolução.

(Nevertheless a striking consensus of general ideas among a fairly coherent social group gave the revolutionary movement effective unity. The group was the 'bourgeoisie'; its ideas were those of classical liberalism, as formulated by the 'philosophers' and 'economists' and propagated by freemasonry and in informal associations. To this extent 'the philosophers' can be justly made responsible for the Revolution)13.

As idéias de legalidade e de direito subjetivo, entretanto, são impostas como instrumentos para o controle do futuro14. Dessa maneira, se por um lado, em fins do século XVIII e início do século XIX, é sedimentada uma consciência geral no mundo europeu de que se vivia um "momento de transição", sendo o presente entendido como "um momento de acelerada transformação" em direção a um "futuro incerto" (com um conseqüente esvaziamento da força ancestral da expressão historia magistra vitae)15, por outro lado, a lei se converte em uma espécie de "oráculo". Afinal, sobre a compreensão de que a linguagem é normalmente dotada de uma clareza suficiente para que todos entendam do mesmo modo um enunciado legal, havendo uma "única decisão correta", a idéia de que ações futuras serão enquadradas na lei gera um grau de certeza sobre o futuro. A idéia de legalidade, assim, permitiria uma espécie de "consulta sobre o futuro", conferindo uma plena previsibilidade às ações do Estado traçadas nos (evidentes) limites da lei. E a resposta a essa "consulta" não seria incerta como na idéia de "profecia" formulada por Holmes16, mas verdadeira, como se tivesse sido proferida pelo "Oráculo de Apolo", deus grego da "luz e da verdade".

Podemos, seguindo com essas metáforas, dizer que a ingenuidade acerca da linguagem conferiu um aspecto mítico à legalidade. E foi justamente essa ingenuidade, que não reconhece a vagueza e a ambigüidade como traços ordinários da linguagem, que delineou os contornos da metodologia jurídica tradicional do século XIX e da noção de legalidade e de separação dos poderes que formaram os pilares iniciais do Estado de Direito, ao lado do individualismo17.

Sobre tais fundamentos, a descoberta da vontade do legislador seria o caminho natural para o "aplicador" do Direito, o qual, diante da clareza dessa vontade, não teria uma atividade propriamente ética, mas...

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