Princípio da Ofensividade como pressuposto do jus puniendi. Enfoque sobre o conceito material do delito à luz da Constituição Federal de 1988.

AuthorLuiz Fernando Kazmierczak
PositionAdvogado. Professor de Direito Penal do Curso de Direito das Faculdades Integradas de Ourinhos - FIO e da Faculdade
1. IntroduÁ„o

O progresso material da nossa civilizaÁ„o n„o se fez acompanhar do correspondente progresso na ciÍncia e na legislaÁ„o penais, que se caracterizam hoje pelo abuso e hipertrofia do castigo penal, com desrespeito aos direitos humanos fundamentais.

A tipicidade, segundo a doutrina formalista clássica, exige a subsunÁ„o formal da conduta ‡ letra da lei. Isso significa conceber o delito como mera violaÁ„o do aspecto imperativo da norma. Contenta-se esse posicionamento, fruto da teoria causal-naturalista e finalista da aÁ„o, com a mera antinormatividade formal. Por conseq¸Íncia, toda conduta que realiza o tipo penal é antinormativa, porque conflita com a norma imperativa que impõe determinada conduta.

Essa forma de ver o delito, como mera desobediÍncia ‡ norma imperativa, despreza o que há de mais relevante na norma penal, que é seu aspecto valorativo.

Em outras palavras, violar a norma imperativa n„o é a mesma coisa que violar a norma de valoraÁ„o. Para violar a norma imperativa basta realizar, ou n„o realizar, a conduta descrita. Na falsidade grosseira, por exemplo, o sujeito realiza uma falsidade que a norma imperativa proíbe, mas n„o viola a norma de valoraÁ„o, isto é, n„o atinge o bem jurídico protegido. Por conseq¸Íncia, sem esse resultado (jurídico) n„o há que se falar em crime, nos termos do artigo 13 do Código Penal.

É justamente neste aspecto que reside o bem jurídico. Toda norma é fruto de uma valoraÁ„o que o legislador faz da realidade e disso resultam eleitos determinados bens que merecem a proteÁ„o penal.

Neste sentido, Marcelo Rodrigues da Silva entende que é necessário entender a Lex Legum como produto natural e legítimo dos vários reclamos que ecoam na sociedade para, em seguida, analisar o Direito Penal, em congruÍncia com as modernas doutrinas nacionais e alienígenas, segundo instrumento de pacificaÁ„o social voltado ‡ proteÁ„o dos valores constitucionalmente consagrados. 1

A partir da eleiÁ„o do bem jurídico-penal podemos analisar seu enquadramento típico, porém n„o mais sob a perspectiva dogmática da teoria formalista clássica, mas sim com uma leitura constitucional do Direito Penal e do delito, que é obrigatória ‡ medida que a sanÁ„o penal incide justamente sobre bens fundamentais da pessoa.

O juízo de tipicidade, destarte, já n„o pode esgotar-se na constataÁ„o da mera subsunÁ„o formal da conduta ‡ letra da lei. Depois disso, ainda se faz imprescindível indagar sobre o bem jurídico e sua necessária afetaÁ„o.

Assim, de acordo com o princípio da ofensividade n„o haverá crime quando a conduta n„o tiver oferecido, ao menos, um perigo concreto, real, efetivo e comprovado de les„o ao bem jurídico. A puniÁ„o de uma agress„o em sua fase ainda embrionária, embora aparentemente útil do ponto de vista social, representa ‡ proteÁ„o do indivíduo contra atuaÁ„o demasiado intervencionista do Estado.

2. Princípio da Ofensividade como limite do jus puniendi

Cabe recordar que vivemos sob a égide de um Estado pluralista, laico, onde há total liberdade de religi„o, de crenÁa e de culto. Logo, um dos valores mais altos da nossa realidade constitucional é a toler‚ncia. Todo poder emana do povo soberano, que no homem reconhece o valor da dignidade assim como o núcleo de direitos invioláveis.

Ora, num Estado com essas características, pluralista, que tem na justiÁa o valor-meta, é evidente que o Direito Penal n„o pode perseguir finalidades transcendentes ou éticas, n„o pode contemplar o homem como mero objeto de tratamento em raz„o de uma presumida inclinaÁ„o anti-social, nem tampouco reprimir a mera desobediÍncia.

O único modelo de Direito Penal e de delito compatível com a ConstituiÁ„o é, em conseq¸Íncia, de um Direito Penal como instrumento de proteÁ„o de bens jurídicos e de um delito estruturado como ofensa concreta a esses bens jurídicos, na forma de les„o ou perigo concreto de les„o. Destoa dessa estrutura constitucional qualquer teoria do fato punível fundada no mero desvalor da aÁ„o. N„o há delito sem desvalor do resultado, ou seja, sem afetaÁ„o de bens jurídicos de terceiras pessoas.

Conceber o Direito Penal como um adequado instrumento de tutela dos bens jurídicos de maior relev‚ncia para a pessoa e, por outra parte, entender que sua intervenÁ„o somente se justifica quando esse mesmo bem jurídico se converte em objeto de uma ofensa intolerável implica, sem dúvida, repudiar os sistemas penais autoritários ou totalitários, do tipo opressivo, fundados em apriorismos ideológicos ou políticos radicais, como os que já, historicamente, vitimizam tantos inocentes.

Significa, ademais, privilegiar um sistema penal de cunho personalista, que vem da tradiÁ„o do Iluminismo, centrado especialmente nas liberdades individuais e no princípio moral do respeito ‡ pessoa humana, e que seja express„o de um modelo de Estado Democrático e Constitucional de Direito e dos direitos fundamentais, enquanto instrumento ao serviÁo da pessoa humana e n„o o inverso.

O Direito Penal inspirado no paradigma da ofensividade guarda conson‚ncia com a concepÁ„o de que a pena - tal como assinalam os doutrinadores da filosofia das Luzes: Montesquieu, Beccaria, Romagnosi, Betham, etc. - deve ser a necessária e a mínima das possíveis e se justifica para a prevenÁ„o de novos...

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