Convenção n. 177 da OIT e o Regime de Trabalho em Domicílio

AuthorEduardo Torres Caprara
ProfessionAdvogado e professor universitário. Mestre e doutor em direitos Humanos pela UPo-eSP
Pages323-330

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Introdução

toda alteração na política e dinâmica econômica promove a transformação dos meios de produção ou pelo menos das relações havidas entre capital e trabalho. Efetivamente, as alterações promovidas pela revolução das comunicações, a globalização e a adoção de um modelo neoliberal que hoje já apresenta desgastes muito semelhantes àqueles vividos em 1929, quando do crash da bolsa de nova iorque, exigiram uma resposta diferenciada dos governos, principalmente no que refere à flexibilização dos direitos laborais para permitir a ampla participação das empresas em condições de equivalência ou mesmo vantagem em uma economia de mercado.

As alterações dos contratos de trabalho, promovidas por essa flexibilização, somente podem ser compreendidas através de um estudo preliminar do fenômeno da globalização, da flexibilização como reflexo da dinâmica neoliberal e seus efeitos na legislação trabalhista, seja ela de âmbito internacional, seja nacional. As alterações não apenas influem no plexo de direitos já existentes, como criam novas formas de contratação, novas realidades contratuais, a exemplo da modalidade de contratação em regime de trabalho em domicílio.

Tal contratação, dada sua importância e relevância para o mundo moderno, recebeu em 1996 regulamentação especial pela organização internacional do trabalho que, em que pese não internalizada no brasil, apresenta diversos conceitos e lineamentos que servem de base para reflexão e debate em âmbito nacional, levando, inclusive, à perquirição das razões de sua não ratificação pelo brasil. Esta é a Convenção n. 177 da organização internacional do trabalho, complementada pela Recomendação n. 184. Este é o estudo proposto nos próximos pontos.

1. Globalização

A palavra globalização pode até nem ser muito elegante ou atraente, mas ninguém que pretenda progredir neste Século a pode ignorar. Na França, a palavra é mondialisation, na alemanha, globalisierung. Sua difusão é a melhor prova da evolução que representa. Dada sua popularidade, não é de surpreender que seu significado não seja claro, tendo algo a ver com a tese de que agora vivemos em um único mundo, em uma economia mundial,1 que abre o mercado nacional ou local ao mundo, o que vem ocorrendo desde o Século XVI.2

Os mais céticos relatam que esse alarde em torno do conceito de globalização não passa de sofisma, pois quaisquer que sejam seus benefícios, preocupações ou dificuldades, a economia global não é assim tão diferente

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da que existia em períodos antecedentes. O mundo, segundo afirmam, continua o mesmo. O comércio internacional, assim, representaria apenas uma pequena percentagem do rendimento nacional.3

Porém, muitos adotam posições radicais em sentido diverso, sustentando que a globalização é um fato concreto, cujos efeitos se fazem sentir por toda parte, pela evolução de um mercado indiferente às fronteiras nacionais, com perda de soberania das nações e força dos políticos. As nações teriam se tornado ficções.4

Ocorre que, de fato, o volume do comércio externo hoje é superior ao de qualquer período anterior e envolve uma gama muito mais extensa de bens e serviços, movimentando volumes financeiros e de capital nunca antes registrados. O dinheiro só existe como informação digital, a economia não tem mais paralelo com aquela de épocas anteriores. O valor do dinheiro muda a todo momento, de acordo com as flutuações verificadas nos mercados.

Por conseguinte, a globalização não é apenas uma coisa nova, mas também algo revolucionário, uma vez que atua e modifica as principais relações produtivas. Assim, deixa de se tratar de um simples agente de transformação econômica, operando efeitos no campo político, tecnológico e cultural, influenciada que é pelo progresso nos sistemas de comunicação registrado a partir do fim da década de 1960.

É, igualmente, um erro pensar que a globalização toca apenas os sistemas considerados desde uma óptica aberta, afastada, distante do indivíduo. É também um fenômeno interior, que influencia aspectos íntimos e pessoais das vidas de cada cidadão, transformando as famílias, os valores, as rotinas. Conforma-se, a globalização, em uma revolução global da vida corrente, cujas consequências se sentem em todos os domínios, do local de trabalho à política.5 Pode-se dizer, por estas razões, que a globalização é uma rede complexa de processos,6 que operam de forma contraditória ou em oposição aberta.

Por outro lado, em que pese levar ao desaparecimento das fronteiras globais, promove o reaparecimento das identidades culturais de diversas partes do mundo, exercendo uma chamada pressão lateral, que consiste na criação de novas zonas econômicas e culturais, dentro e sobre as nações. Essas mudanças, fomentadas por uma série de fatores estruturais, históricos e culturais, impõem uma espécie de colonização ao contrário, criam uma sociedade cosmopolita global,7 que apresenta reflexos claros nas relações laborais.

Como afirmavam Friedrich engels e Karl Marx, o indivíduo na sociedade civil não é comparável a um átomo, pois o átomo não tem necessidades e é autossuficiente. A falácia do indivíduo atômico, adotada pelos economistas do ido Século XIX, reside no fato de que todo membro da sociedade civil se encontrar vinculado aos demais por uma relação de interdependência, que dá base ao conceito moderno de estado, ainda mais em uma sociedade globalizada, em que o caráter integrante do desenvolvimento da divisão do trabalho constitui o principal motivo pelo qual a realidade local autônoma é destruída.8

Também, não se fala mais em especialização do trabalho, mas sim em alargamento da cadeia comercial, o que autoriza o regime do capital a afastar, cada vez mais, do controle habitual. Emergem, na nova realidade o comércio à distância, o fernhandel, no qual existe um domínio de livre manobra, operando à distância, que o coloca ao abrigo das fiscalizações ordinárias, ou lhe autoriza contorná-las.9 esse movimento conflita, diretamente, com o caráter cosmopolita do homem moderno, que procura sua felicidade pessoal e recebe influências de um conceito de felicidade que se universaliza - duplo movimento que se acentua pela força de difusão mundial da cultura de massa.10

Nesse contexto, assume especial importância o meio de reprodução dos meios de produção, pois o sistema globalizado, e mesmo o capitalismo, não possui força se não consegue, para além da organização de um determinado modo produtivo, reproduzir o mesmo para uma escala que lhe autorize retirar o máximo de benefício, submetendo a força de trabalho à sua dinâmica.11 este é o chamado paradigma dominante, que tenta reduzir a complexidade das relações produtivas, promovendo a pluralização de nomes e sobrenomes dos institutos jurídicos como forma de enfraquecer sua regulamentação.12

2. Neoliberalismo e flexibilização laboral

A crise do sistema capitalista das décadas de 1920 e 1930 teve um severo impacto na dinâmica do sistema.

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O crescimento do desemprego e a ruptura da crença na prosperidade eterna, tiveram como marco a sextafeira negra de Wall Street. A crise econômica global foi amplamente difundida como a falha do liberalismo e do capitalismo. Enquanto, nos estados Unidos, Franklin Roosevelt propunha o new deal ao povo americano, John Maynard Keynes trabalhava em sua teoria que buscava explicar e superar as instabilidades inerentes do sistema capitalista. Em torno do globo, a população e a academia se voltam contra o liberalismo e os adeptos da prática do livre mercado.

Alexander Rustow, desencantado com o regime socialista, cunhou o termo neoliberalismo afirmando a necessidade de um estado menos intervencionista, menos engajado no mercado, sem protecionismo, subsídios, cartéis, ou aquilo que hoje se chama de capitalismo crônico, captura regulatória ou bem estar corporativo. Todavia, também sustentava um papel importante do estado como interventor limitado no sentido de garantir a aplicação das orientações mercadológicas.13

Em síntese, o conceito de neoliberalismo hoje consagra a dinâmica de políticas e processos através do qual os interesses privados são autorizados a controlar, tanto quanto possível, a vida social de forma a maximizar seus lucros. Essa política vem sendo adotada nas últimas duas décadas, tendo como consequências um crescimento massivo da desigualdade econômica e social, a marginalização da população e dos países mais pobres, um meio ambiente global degredado, uma economia instável e uma bonança e riqueza sem precedentes aos poucos mais afortunados.14

As mudanças do modo de produção capitalista, propugnadas pela globalização moderna, agregando a dinâmica neoliberal e de revolução tecnológica acirram as disputas entre os mercados internacionais, aumentam a competitividade e exigem uma rápida resposta em termos de inovação e revisão legislativa. Um viés próprio desse movimento é a necessidade de reduzir os custos com mão de obra, o que induz a um sistema de revisão da legislação trabalhista e dos princípios protetivos laborais, novas modalidades de contratação e novas tendências.15

A flexibilização surge como uma proposta resolutiva, em contraponto ao modelo de estado total combatido pela proposta neoliberal, para o problema da crise, facilitando a concorrência com os mercados internacionais.16 Consiste na autorização de regramentos de exceção ou mesmo na desregulamentação de determinados aspectos da proteção normativa, é o antônimo da rigidez pregada pela indisponibilidade das normas trabalhistas, compreendendo a adaptação das normas para atender às alterações da economia...

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