O movimento de expansão não uniforme e a tensão entre unidade e fragmentação do Direito Internacional

AuthorDélber Andrade Lage
PositionMembro do Centro de Direito Internacional-CEDIN e Professor do Programada Pôs-Graduação do CEDIN e das Faculdades Milton Campos
Pages88-124

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Introdução

O Direito Internacional (DI) passa por um delicado momento: por um lado, assiste-se a um crescimento notável de áreas da agenda internacional que têm sido regulamentadas por normas jurídicas; por outro, raras vezes ele fora tão desafiado. Muitos têm apontado seu crescimento desordenado como causa de sua fragmentação, que teria levado a inconsistências de tal magnitude que ele não seria capaz de exercer influência concreta na atuação dos atores que atuam no contexto internacional.

Esse trabalho se volta, portanto, para a análise do movimento de expansão não uniforme do Direito Internacional, e visa estabelecer em que medida esse crescimento pode contribuir para seu colapso ou para sua consolidação.

Ao analisar esse contexto, a doutrina tradicional tem sido taxativa ao afirmar sua fragmentação, que seria decorrente da consolidação de sistemas normativos autônomos - e muitas vezes contraditórios - que comprometeriam a unidade da ordem jurídica internacional.

Conforme se argumentará, essa corrente parte de pressupostos teóricos equivocados, que decorrem da analogia do cenário internacional com o doméstico. Nesse sentido, objetiva-se redefinir os termos do debate, indicando um arcabouço teórico formulado com premissas mais adequadas a seu objeto de estudo. Com isso, tem-se elementos novos para se abordar a questão, com base nos quais se formulará uma hipótese distinta daquela colocada tradicionalmente.

O trabalho será, portanto, dividido em duas partes, A primeira se destina à análise critica dos postulados teóricos da corrente clássica de interpretação do Direito Internacional, a partir da qual se indicará suas principais limitaçõesPage 89explicativas. Ela é subdividida em clois títulos, sendo o primeiro reservado para a colocação da questão da fragmentação a partir da perspectiva tradicional. O seiTiindo título tem como objetivo a avaliação de seus problemas estruturais, que {.i;,s£jariain conclusões precipitadas acerca dos efeitos da expansão do DL

A segunda parte tem como objetivo central a redefinição do debate acerca da uiiidade do Direito Internacional. Para tanto, também se subdivide em dois títulos, quais se analisa a formação e as características do ordenamento jurídico iniernacional (título I); bem como as causas e efeitos da criação de sistemas normativos especializados (título II). Será com base na relação dessas duas Jimensões que será formulada uma nova hipótese, pela qual se afirma que o DI esta inserido em um contexto em que se sinaliza para uma forte tendência de sua -.dirmação, e que a consolidação de regimes e o crescimento do número de Cortes v 'iubunais Internacionais servem como indicadores de um gradativo movimento de juridicização das relações internacionais.

Parte I :A abordagem tradicional e suas limitações
A tensão entre unidade e fragmentação na perspectiva tradicional
1. A fragmentação do Direito Internacional

A recente expansão do Direito Internacional tem sido objeto de ampla discussão entre os estudiosos tanto do Direito quanto das Relações Internacionais (RI)2. Tal movimento deve ser compreendido a partir de uma dupla perspectiva, na medida em que se caracteriza tanto pelo aumento do número de instrumentos normativos utilizados internacionalmente3 quanto pelo surgimento de vários órgãos de solução de controvérsias internacionais4. É com base na análise desses elementos que se coloca a discussão acerca da "fragmentação" do Direito Internacional.

De acordo com os defensores dessa tese, a regulamentação de áreas específicas da agenda internacional teria criado um ambiente de certa autonomia e insulamento de seus ramos. A justificativa para tai posicionamento residiria no fato de que a essa tendência à juridicização não se daria de forma uniforme, na medida em que cada uma dessas matérias estaria submetida a um conjunto de princípios próprios, o que seria reforçado pela existência de um desenho institucional específico para cada um desses casos. A simples comparação, por exemplo, entre as normas relativas ao Comércio e ao Meio Ambiente seriam elucidativas a esse respeito5. De acordo com o argumento, é com base nessa observação que se tem o primeiro indicador da fragmentação: a existência de ramos especializados (regimes) criaria umPage 90cenário de convivência de sistemas normativos autónomos, o que exponenciaria a possibilidade de conflitos entre normas. Ademais, a situação se mostraria ainda mais problemática a partir do momento em que se percebe que não há nenhum mecanismo preestabelecido para sua solução6.

Esse argumento seria reforçado, igualmente, quando se analisa o aumento do número de Cortes e Tribunais Internacionais) que tem sido caracterizado justamente pela especificidade de sua competência e pela diferenciação de seu desenho institucional7. Assim, a idéia de independência entre esses "sistemas legais", associada à ausência de hierarquia entre eles implicaria a concreta possibilidade de conflito de jurisdição e de jurisprudência entre esses órgãos8. Por fim, em caso de continuidade dessa situação, poderia haver casos em que os órgãos consolidassem interpretações diferentes de princípios basilares do Direito Internacional, o que reforçaria a idéia de sua fragmentação.

2- A noção de unidade e a analogia com o Direito Interno

Entretanto, a tese da fragmentação se mostra "uma resposta ruim a uma pergunta ruim" Conforme se argumentará, essa noção decorre de uma concepção inadequada do deve ser compreendido como "unidade" do sistema normativo internacional. Como destaca Dupuy, discutir a fragmentação "nos traz a questão de compreender o que, em termos legais, significa essa unidade, se é que ela existe9". DessaPage 91forma, faz-se necessária uma discussão preliminar acerca do carácer do sistema internacional, para que então se possa ter os elementos fundamentais para a análise consistente acerca dos efeitos da expansão do Direito Internacional

Ao se analisar os termos em que é colocada a discussão, pode-se perceber que o "problema da unidade" tem sido compreendido com base em uma concepção equivocada acerca da natureza do sistema internacional. De acordo com o argumento de Koskenniemi, essa noção se funda em uma analogia com o contexto doméstico, pela qual se assume um nível tal de convergência de interesses que acaba por afastar a necessidade de discutir a legitimidade das leis produzidas internamente. Nesse sentido, a norma seria aceita como um bem público a priori, cujo ideal é "praticamente auto-evidente:10".

Nesse sentido, a noção de unidade é duplamente questionada: por um lado, critica-se a ausência, no plano internacional, de uma instituição capaz de estabelecer e interpretar as normas; por outro lado, se houver um órgão (ou Estado) que exerça esse papel, ele criará uma ordem internacional imperial, dada a heterogeneidade de interesses existente nesse cenário11.

Tendo como referência essa perspectiva, é sintomática a constatação de que a discussão acerca da fragmentação torna força justamente no momento em que ocorre o movimento de expansão não uniforme da regulamentação jurídica internacional, uma vez que esta se dá de forma específica em relação à agenda que é objeto de regulação. O que se pode perceber, portanto, é que o debate tem como ponto central a discussão envolvendo instituições que representariam uma idéia generalista do sistema normativo internacional (notadamente a Corte Internacional de Justiça)12.

Do que fora exposto, pode-se concluir, finalnente, que o debate acerca da "unidade" do DI se pauta em uma concepção do contexto internacional como algo análogo ao contexto doméstico. Dessa forma, aqueles que defendem a tese de sua fragmentação o fazem com base na ausência de uma instituição de caráter geral, que tenha a competência para estabelecer e determinar a aplicação das normas internacionais. Nessa perspectiva, os recentes movimentos apresentados anteriormente - quais sejam, o de expansão não uniforme (caracterizado porPage 92diferenças substanciais nas agendas reguladas) e o de aumento do número de Cortes e Tribunais Internacionais - são utilizados por esses autores como indicadores da diminuição da unidade do sistema normativo internacional

A idéia da fragmentação seria formulada, portanto, com base na tese de que o Direito Internacional não constituiria um "sistema jurídico", de acordo com o conceito de Hart. De acordo com esse autor, um sistema legal existiria a partirr do momento em que esse se fundasse na convivência harmônica entre "normas primárias" e normas...

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