A Justiça de Transição como Modelo de Gestão de Conflitos: um Mito Universal?

AuthorJuliana Lima
PositionMestre em Ciências Políticas e Estudos Africanos pela Universidade Sorbonne, Doutoranda em Ciências Políticas pela Universidade Sorbonne, professora (chargé de TD) em Direito Constitucional na Universidade Sorbonne.
Pages97-117
AJustiça de Transição como Modelo de Gestão de Conitos: um Mito Universal? 97
A Justiça de Tr ansição como Modelo de Gestão de Conitos: um
Mito Universal?
JULIANA LIMA1
Resumo
Achamada justiça de transição aparece como temáticarelevante àreexão
acadêmica, reetindo o espaço conquistado pelos direito penal internacional e pelos
mecanismos extrajudicias de resolução de conitos no plano da “diplomacia da paz”.
Este artigo visa compreender acomplexidade que resulta da aplicaçãodesta expressão
auma multiplicidade de práticas heterogêneas (e, por vezes antagônicas)que são (ou
podem ser) agrupadas no seio do que se convencionou chamar de justiça de transição. A
partir de uma análise da evolução do conceito, buscamos esclarecer como a expressão
justiça de transição ganha em legitimidade (tanto quanto, ao mesmo tempo, confere
legitimidade) auma multiplicidade de atores epráticas fundadas no respeito aos direitos
humanos enuma moral universal supostamente aplicável atodas as situações de
transição. Enm, este artigo busca analisar opapel da justiça transicional na evolução
(normativa eprocedimental) do direito internacional, ao mesmo tempo em que questiona
a tendência à moralização da rule of law eaindependência das instâncias de transição
vis-à-vis de um contexto internacional marcado por lutas políticas.
Abstract
Some important academical research has been devoted to Transitional Justice.
That could be partially explained by the succes of international criminal law and
extra judiciary mechanisms of conict resolution in the eld of “peace diplomacy”.
One of this article’sgoals is to shed some light on the complex dynamics of multiple
heterogeneous (and even antagonic) practices that are (or could be) identied under
the denition of transitional justice. By analysing the dynamics of the construction
and evolution of the transitional justice concept we try to understand how it nds its
legitimacy (as well as meanwhile legitimazing in return) the existance of avariety of
actors and practices based on the respect of human right’s and on a speach of moral
and universal content. Finally, this article tries to analyse the role that transitional
justice plays on the transformation of international law,atthe same time that it
questions this world-wide trend that moralises the rule of law and the independence
of transitional justice instances regarding an internationalcontext where political
struggle prevails.
1Mestre em Ciências Políticas eEstudos Africanos pela Universidade Sorbonne,Doutoranda em Ciências
Políticas pela Universidade Sorbonne, professora (chargé deTD) em Direito Constitucional na Universidade
Sorbonne.
98 VANUÁRIO BRASILEIRO DE DIREITO INTERNACIONAL | V. 1
Introdução
ltima década do século XX eoiniciodo século XXI testemunharam grandes
transformações geopolíticasnocenário mundial. Va le ressaltar as intervenções no
Iraque (1991), na Somália (1992) e no Kosovo (1999), o genocídio na Ruanda
(1994),omassacre de Sebrenica na Bosnia (1995), aproliferaçãodeconitos
civis no continente africano (República Democrática do Congo, Uganda, Angola,
Moçambique, República Centro-Africana, entre outros) e, recentemente, oatentado
terrorista do 11 de setembro ealuta contra oterrorismo.Esse contexto levou ao
revigoramento das intervenções militares eaocrescimentodo número de operações
de paz no mundo2,xando parâmetros para uma reexão profunda sobre amelhor
maneira de prevenir aviolência eassegurarapaz no âmbito mundial. Uma série
de dilemas aos quais são confrontados os países “em transição” alimentam esta
reexão: dizer ou não da verdade; rememorar ou remeter ao silêncio; perdoar ou
sancionar os agressores; reconhecer, homenagear e reparar as vítimas (e/ou seus
familiares); “desembrutecer”3a sociedade criando meios para a “normalização” e o
retorno à vida civil, reconstruir o país e reconciliar inimigos de guerra; impor uma
história ocial ao conito ou escrever a historia a várias mãos com a participação
da comunidade local.
Todas estas questões não escapam às tensões existentes entre a “diplomacia
da justiça” e a “diplomacia da paz” e são, em ultima instância, submetidas aos
constrangimentos do jogo político, ao peso das interações locais e internacionais, e
a uma luta de poder, sujeita a interesses variados, condicionando os discursos e as
práticas dos mais diversos atores.
Neste contexto, duas instituições vão emergir em paralelo, reetindo uma
dinâmica que se funda sob uma “moral universal” e uma crescente “jurisdicisação”4
das questões relativas à paz. Ainstitucionalização destes dois modelos de “gestão
de crise” – um voltado para medidas jurisdicionais de solução de conitos, e outro
enquanto vertente não punitiva alternativa ao primeiro – é reexo do engajamento de
atores que atuam em diferentes arenas (política, diplomática, prossional, nacional e
internacional) em favor dos direitos humanos, conferindo uma nova dinâmica à luta
por espaços de atuação e de poder, que será, em parte, responsável pela disseminação
de novos métodos de resolução de conitos, sob a “etiqueta” da justiça de transição.
Acriação de uma Comissão de Verdade e Reconciliação para investigar os
crimes cometidos pelo regime do apartheid na África do Sul estabeleceu num novo
2Dentre as mais de sessenta operações de paz das Nações Unidas, mais de quarenta e cinco (ou seja, mais de
setenta por cento) foram iniciadas na década de noventa. Segundo dados disponíveis no site da Comissão de
Consolidação da paz, em meados de 2009 quinze operações estavam em curso.
3Anoção de “embrutecimento” (brutalization”) da sociedade foi levanta por G.L. MOSSE in Fallen Soldiers:
Reschaping the Memory of the Wo rldWa rs, Oxford, Oxford University Press, 1990.
4LEVI Ron, HAGAN, John. Penser les crimes de guerre. Actes de la Recherche en Sciences Sociales. Paris,
n. 173, p. 6-21, juin 2008.

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