A Cisão dos “Internacionalistas” e o Recurso às Normas e às Regras como Desafio às Fronteiras Disciplinares: Ciência Política, Direito Internacional e Relações Internacionais

AuthorVictor Coutinho Lage
PositionMestrando em Relações Internacionais pelo Instituto de Relações Internacionais da Pontifícia universidade Católica do Rio de Janeiro e membro do Grupo de Análise e Prevenção de Conflitos Internacionais (GAPCon).
Pages139-166

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A Ciência1 Política, o Direito Internacional e as Relações Internacionais são ligados pelo processo histórico de formação acadêmica; tanto as últimas como o segundo foram criados como um intuito candente: evitar a guerra. entretanto, esse elo sePage 140perdeu no tempo, à medida que se consubstanciou uma separação disciplinar entre os campos de conhecimento e, por conseguinte, se gerou uma cisão entre os estudiosos do “internacional”, denominados de “internacionalistas”3. este artigo pretende problematizar os mitos fundacionais da disciplina de Relações Internacionais, responsáveis pela sua auto-afirmação identitária e pela cisão acadêmica e ontológica entre Ciência Política, Relações Internacionais e Direito Internacional. Demonstrar-se-ão como os discursos disciplinares de juristas internacionalistas do primeiro quarto do século XX levaram à bifurcação entre Ciência Política e Direito Internacional e como, nos anos seguintes, este campo específico do “internacional” desenvolveu mitos fundacionais que não somente o distinguiram da Ciência Política, como do próprio Direito Internacional, chegando, em muitos casos, a negar sua própria existência. essa negação parte, como se argumentará, de uma analogia doméstica geradora de uma estrutura discursiva em torno da concepção de anarquia, como uma condição existencial de um sistema sem autoridade central soberana, ou seja, definido com base na ausência ou na negatividade, em relação ao ambiente soberano hierárquico doméstico do estado (Kratochwil, 1989; onuf, 1989; Ashley, 1988; Walker, 1993; Schmidt, 1998b), tornando, para muitos, implausível falar em um Direito Internacional4.

Nos estudos jurídicos internacionais, autores como Pellet (2007) veem as normas como padronização de conduta dos agentes, portanto definidoras do que é “normal” ou correto, mesmo em um ambiente em que não há qualquer poder soberano. uma norma jurídica, segundo o autor, deve advir de uma fonte, caso contrário poder-se-á falar em norma sociológica, econômica ou de qualquer outra natureza, mas não jurídica. essa tipificação feita por Pellet (2007) tem, por um lado, o mérito de não fundir as concepções de norma e fonte, possibilitando uma perspectiva de processo dinâmico para a formação do Direito Internacional; por outro lado, porém, a delimitação de uma norma jurídica pode contribuir para a não comunicação entre as áreas de conhecimento, as quais se vinculariam, respectivamente, a um tipo de norma específico, de acordo com a disciplina em que se insere o estudo. o próprio Pellet mitiga essa tipologia, afirmando que não há um limite nítido entre o jurídico e o não-jurídico (Mello, 2001), porém pouco se avança nessa dimensão. Dito isso, um diálogo entre Direito Internacional e Relações Internacionais pode ser profícuo para a ampliação dessa noção de norma e para um entendimento mais nítido do que está em jogo na definição das peculiaridades do primeiro, expostas por juristas como Pellet (2007) e Mello (2001)5,Page 141e na relação entre as correntes teóricas convencionais dos dois campos6, assim como em seus impactos para a sociedade.

Além da problematização dos mitos fundacionais das Relações Internacionais, um objetivo ulterior do artigo é entender como, a partir do final da década de 80, a rigidez ontológica da disciplina de Relações Internacionais e sua separação da Ciência Política e do Direito Internacional começou a ser colocada em suspeição por estudiosos embasados exatamente no Direito Internacional7, por meio do estudo das normas e das regras nas relações sociais8. ou seja, o Direito Internacional, do qual se originaram estudos que, no primeiro quarto do século XX, contribuíram para a separação metodológica e ontológica de um domínio internacional e, mais tarde, para a constituição da disciplina de Relações Internacionais (a qual veio, em parte, a negar a existência do próprio Direito Internacional) é uma das fontes principais de abordagens contemporâneas que questionam a exata rigidez ontológica disciplinar que o mesmo ajudou a institucionalizar.

Como foi dito, Pellet (2007) defende uma concepção de norma jurídica que diferencia o Direito de outros campos de conhecimento. Indo além, o autor determina que o Direito Internacional e o Direito Interno, a despeito de suas relações entre si, constituem duas ordens distintas e auto-suficientes. A contestação dessa afirmação ou, ao menos, a demanda por maior discussão da mesma é propiciada por um entendimento mais amplo da atuação das normas e das regras na vida social – esta é mais uma dimensão em que as Relações Internacionais e o Direito Internacional podem se nutrir mutuamente, como será visto na segunda seção, e cuja premência Mello (2001), já em 1975, e depois em 1982, salientou.

A partir de uma perspectiva crítica a ser delineada, propõe-se cumprir dois passos: em primeiro lugar, lançar luz sobre os discursos fundacionais da disciplina, retraçando as práticas que levaram à sua distinção em meio às ciências sociais; em seguida, o segundo passo almeja compreender como a abordagem das normas e das regras ganha relevância desde o final da década de 80, propiciando um espaço de questionamento das fundações disciplinares canônicas e, ademais, da própria existência de fronteiras ontológicas entre o “internacional”, o “interno” e o “legal”. A relevância de um estudo como este vai muito além da revisão dos pressupostos basais de cada uma das disciplinas: no epicentro da discussão está a possibilidade de melhor compreensão da complexidade da sociedade política, das relações nada distantes entre a norma e o poder, entre o jurídico e o político (onuf, 1989; Kratochwil, 1989; Foucault, 1987, 2005, 2007a; Agamben, 2002, 2004, 2008).

Antes de prosseguir, entretanto, são cabíveis algumas notas preliminares. Primeira, os termos normas e regras serão utilizados de maneira intercambiável, na mesma linha de indiferenciação seguida pela maior parte dos estudiosos em Relações Internacionais e no Direito Internacional9. Segunda, o delineamento das fronteiras disci-Page 142plinares acima está em consonância com o discurso anglo-saxão acerca das Relações Internacionais, o que não reduz sua saliência, uma vez que a disciplina é considerada por muitos uma empreitada dominada pela academia dos estados unidos (Waever, 1998; Smith, 2000). terceira, a perspectiva crítica defendida se sustenta nas literaturas de Relações Internacionais e de Filosofia, estando ciente, no entanto, dos avanços recentes de vertentes diversas de estudos jurídicos críticos, como também, por outro lado, do anacronismo do estudo do Direito Internacional, conforme ensinado em grande parte das faculdades e dos livros recentes; essa opção metodológica se deve aos limites de espaço do artigo, ao objetivo de maior aprofundamento nesses dois primeiros campos e ao pressuposto de que muitos dos leitores desse artigo já estarão familiarizados com o que se desenvolve nesses estudos críticos e com o anacronismo supracitado10. Por fim, pauta todo o esforço desse artigo o entendimento de que o diálogo entre o Direito Internacional e as Relações Internacionais é precípuo para uma melhor compreensão das mesmas nas relações sociais e que a discussão aqui proposta pode fortalecêlo. Vale reiterar, essa possibilidade foi fechada por muito tempo exatamente pela institucionalização da “presunção de anarquia” ou do “discurso da anarquia”, mencionado acima11. Dessa forma, este artigo aspira contribuir, através do questionamento da cristalização ontológica que cindiu as Relações Internacionais da Ciência Política e do Direito Internacional, para a emergência de diálogos mais profícuos entre as disciplinas e, em última análise, para a própria contestação e subversão dessa rigidez dos discursos disciplinares convencionais12.

Feitas as notas, a próxima seção se dedica ao primeiro dos objetivos propostos – o re-acesso das práticas acadêmicas que levaram à cisão entre as disciplinas; em seguida, passa-se ao segundo dos objetivos – entender como o recurso às normas e às regras desafia as fronteiras ontológicas; ao fim, faz-se uma breve conclusão.

1. A cisão entre Ciência Política, Direito Internacional e Relações Internacionais

Abordar o processo histórico de formação das Relações Internacionais não pode conduzir ao que Foucault (2007a) chama de “pesquisa de origem” (p.16), isto é, à busca pela “essência exata da coisa, sua mais pura possibilidade, sua identidade cuidadosamente recolhida em si mesma, sua forma imóvel e anterior a tudo o que é externo, acidental, sucessivo” (p.17). A partir disso, dirige-se ao que é contingente, político, social, e não ao necessário, ao natural, ao reificado. Quando a narrativa convencional da disciplina de Relações Internacionais se remete a tucídides, Maquiavel ou hobbes como as autoridades precursoras do pensamento realista político acerca do “internacional” ou nos casos em que torna Morgenthau e Carr os combatentes contra um idealismo supostamente dominante no entreguerras e, ao fim, como progenito-Page 143res de uma hegemonia realista na disciplina, um complexo emaranhado de relações políticas e de poder está em exercício. A naturalização de uma ou de outra narrativa – quando não das duas, em concomitância – gera mais do que um somente um equívoco interpretativo das obras desses autores13; entra em curso e se institucionaliza um processo de busca pela origem essencial, pela possibilidade pura de emergência, pela identidade de uma disciplina fadada ao estudo de um ambiente ontológico peculiar: o “internacional”.

Diante disso, será profícua a perspectiva histórica que se...

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