Os Sistemas Interamericano e Europeu de Proteção dos Direitos Humanos

AuthorIreneu Cabral Barreto
PositionJuiz do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos
Pages110-132

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I - Introdução
  1. A Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH), aprovada pela Assembleia Geral das Nações Unidas, na sua 183.ª sessão, realizada em Paris, em 10 de Dezembro de 1948, constitui o ponto de partida para a defesa dos direitos humanos no sentido moderno do termo.

    Esta Declaração encerra um conjunto de princípios que definem um ideal comum a atingir por todos os povos e por todas as nações e que devem ser considerados património comum da Humanidade, inscritos numa consciência jurídica comum aos povos de todos os continentes.

    Com a Declaração, os direitos humanos evoluíram, ganhando uma dupla projecção universal: primeiro, a sua universalidade permite a qualquer pessoa invocá-los contra qualquer Estado e reclamar para si as condições humanas inerentes, onde quer que esteja e independentemente da situação concreta em que se encontre colocada; segundo, o respeito dos princípios e regras relativos aos direitos fundamentais da pessoa humana passou a constituir uma obrigação de cada Estado perante os outros Estados.

    A DUDH permanecerá sempre como o repositório de um conjunto de valores que os Estados se esforçam por realizar, harmonizando progressivamente as suas concepções, sem prejuízo das suas próprias raízes culturais.

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  2. Não basta reconhecer e consagrar os direitos hum anos. Essenciais serão as garantias de protecção que lhes devem estar associadas, garantias estas que só um regime democrático pode oferecer em toda a plenitude.

    A Declaração Universal dos Direitos Humanos viu-se explicitada em diversos instrumentos, sendo uns de âmbito planetário, como os Pactos das Nações Unidas sobre os Direitos Civis e Políticos e sobre os Direitos Económicos, Sociais e Culturais, e outros de alcance regional, como a Convenção Europeia dos Direitos Humanos (CEDH), a Convenção Interamericana dos Direitos Humanos (CADH) e a Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos.

    As considerações seguintes serão dedicadas ao estudo das semelhanças e das diferenças entre os sistemas europeu e americano, primeiro ao nível dos direitos e berdades garantidos e depois no mecanismo de controlo instituído1.

II - Direitos e liberdades protegidos
  1. A CEDH só incorpora direitos e liberdades civis e políticos, ficando os chamados direitos económicos, sociais e culturais para a Carta Social Europeia com um específico mecanismo de controlo2.

    A CADH inclui no capítulo II da Parte I, os direitos económicos, sociais e culturais, com um regime especial de controlo sujeito ao desenvolvimento progressivo (art. 26º), mas sendo certo que só serão aceites queixas relativas aos direitos ressalvados no Protocolo adicional à CADH de 1988, ou seja, à liberdade de associação, incluindo a sindical - art. 8º, nº 1, e o direito à educação - art. 13º 3.

  2. No artigo 2º da CEDH consagra-se a protecção do direito à vida à semelhança do que acontece com o artigo 4º da CADH.

    O direito à vida previsto no artigo 2º da CEDH refere-se à vida física e mental, ao direito a não ser morto, a não ser privado de vida.

    A disposição deixa em aberto toda a problemática relacionada com o princípio e o fim da vida que é objecto de protecção; coloca-se, assim e desde logo, a questão do momento do começo da vida, imbricada com os problemas do destino do ovo fecundado e da interrupção da gravidez 4.

    Os trabalhos preparatórios não ajudam a clarificar a questão5, a doutrina está dividida e não houve ainda oportunidade de adopção, por parte dos órgãos da Convenção, de uma posição clara e definitiva acerca desta matéria.

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    Aliás, o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (Tribunal) precisou que, na falta de um consenso europeu sobre a definição científica e jurídica do começo da vida, o ponto de partida do direito à vida releva da margem de apreciação que deve ser reconhecida aos Estados neste domínio6.

    Porém, é possível concluir que o nascituro não beneficia da protecção dada por este artigo 2º 7.

    A Comissão Europeia dos Direitos Humanos (Comissão), na sua Decisão de 29 de Maio de 1961, na Queixa nº867/608, recusou-se a apreciar uma lei norueguesa que permitia a interrupção da gravidez, por não se considerar competente para, em abstracto, conhecer a compatibilidade de uma lei com a Convenção.

    A Queixa nº 7045/75, de conteúdo similar, relativa a uma lei austríaca sobre o aborto, foi também declarada inadmissível pela Comissão 9.

    Contudo, uma outra Queixa, a nº6959/75, caso Buggeman e Scheuten, onde se criticava a lei alemã sobre o aborto, apresentada por uma associação e duas mulheres, ultrapassou a fase da admissibilidade, mas foi apenas examinada sob o ângulo do artigo8º para se concluir que não havia violação10.

    Mais tarde, na sua Decisão de 13 de Maio de 1980, Queixa nº8416/7911, apreciando uma lei inglesa sobre o aborto, a Comissão respondeu negativamente ao direito absoluto à vida do embrião, invocando, nomeadamente, que esse direito sempre estaria condicionado ao direito à vida da mãe; e, como no caso concreto, a questão se resumia ao conflito entre a vida da mãe e a do feto, a Comissão concluiu que, nessas circunstâncias, o aborto estava coberto por uma limitação implícita do direito à vida do feto para salvar a vida da mãe.

    Na sua Decisão de 19 de Maio de 1992, Queixa nº1700/9012, a Comissão, reconhecendo embora que a expressão qualquer pessoa dificilmente pode ser aplicada à criança a nascer, assinalou que os Estados têm a obrigação de tomar medidas adequadas à protecção da vida, não estando excluído que, em certas condições, o feto deva ser protegido.

    E face às divergentes legislações sobre a interrupção voluntária da gravidez, a Comissão admitiu que se tratava de um domínio delicado, onde os Estados gozam de um certo poder discricionário face à Convenção.

    Por seu turno, o Tribunal dispensou-se de apurar se a Convenção garante o direito ao aborto ou se o direito à vida, reconhecido neste artigo, abrange igualmente o feto13.

    Na Decisão de 5 de Setembro de 2002, Queixa nº 50 490/9914, queixa apresentada pelo marido que pediu, sem sucesso ao nível interno, uma indemnização à suaPage 113mulher pelo facto de esta ter abortado apesar da sua oposição -, o Tribunal não se comprometeu sobre a questão de saber se o feto pode beneficiar da protecção concedida pela primeira frase do artigo 2º da CEDH, porquanto, no caso, o aborto fora praticado para proteger a saúde da mulher, mostrando-se observado um justo equilíbrio entre a necessidade de assegurar a protecção do feto e os interesses da mulher.

    Aparentemente mais clara seria a CADH, que no seu artigo 4º dispõe: «Toda a pessoa tem o direito de que se respeite a sua vida. Esse direito deve ser protegido pela lei em geral, desde o momento da concepção. Ninguém pode ser privado da vida arbitrariamente

    ......................................................................

    Não se deve impor a pena de morte à pessoa que, no momento da perpetração do delito, for menor de dezoito anos, ou maior de setenta, nem aplicá-la à mulher em estado de gravidez».

    Mais: a CADH proíbe, naquele artigo 4º, a execução da pena de morte em mulheres grávidas, o que poderia inculcar a ideia de que o feto beneficia do direito à vida15.

    Comparado com o texto europeu, uma conclusão se deve retirar: há sem dúvida uma mais forte garantia do direito à vida à partir da concepção, no texto americano.

    Contudo, esta conclusão perde muito da sua força quando se pondera a expressão «em geral».

    Em geral

    significará que, em escassa medida ou excepcionalmente, pode não se cumprir a conduta indicada; no contexto daquele artigo 4º da CADH, os Estados parte devem garantir, na maioria dos casos, o direito à vida desde o momento da concepção, mas excepcionalmente esses Estados podem outorgar leis que possam não garantir o direito à vida desde aquele momento.

    Por isso, essa disposição tem sido interpretada no sentido de permitir aos Estados não sancionar penalmente certos casos de aborto16.

    Sem querer antecipar uma interpretação do artigo 2º da CEDH que não está avalizada pela Jurisprudência do Tribunal, parece que a CADH sempre consagrará uma protecção mais forte do direito à vida, protecção que vai até ao momento da concepção, pois mesmo que se permitam algumas excepções, elas limitar-se-ão a não penalizar certas interrupções da gravidez17.

  3. Também no âmbito do «processo equitativo» é possível detectar algumas diferenças entre as duas Convenções.

    3.1. Efectivamente, uma das questões que mais dificuldades tem suscitado ao Tribunal é sem dúvida a relativa ao processo equitativo, consagrado no artigo 6º da Convenção.

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    3.1.1 O artigo 6º da Convenção exige que, nos processos que determinem os «direitos e obrigações de carácter civil», esses requisitos de um processo equitativo sejam observados18.

    Porém, a noção de direitos e obrigações de carácter civil sofreu, por parte dos órgãos da Convenção, uma interpretação fluida19.

    Não tem sido fácil traçar os contornos de uma figura que tem no direito anglo-saxónico uma feição ampla, abrangendo mesmo tudo o que em terminologia românica se poderá chamar de liberdades públicas .

    O Tribunal esclareceu, no seu Acórdão König, de 28 de Junho de 1978, relativo a um processo administrativo onde se impugnava uma decisão da Administração que estabelecia o encerramento de uma clínica privada e se impedia um médico de exercer a sua profissão, que, se os direitos e obrigações devem ter o seu fundamento no direito interno, já a sua definição é feita de uma maneira autónoma, teleológica e funcional.

    Afirmando mais uma vez a necessidade de uma interpretação autónoma20, o Tribunal precisou que interpretar a referida noção apenas com referência ao direito interno conduziria a um resultado incompatível com o objecto e fim da CEDH; e, se o Tribunal não recusa interesse à legislação interna do Estado requerido, valoriza mais o conteúdo material e os efeitos que lhe são conferidos no...

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