Brasil e o Sistema Interamericano de Proteção dos Direitos Humanos: impacto, desafios e perspectivas

AuthorFlávia Piovbsan
PositionProfessora doutora em Direito Constitucional e Direitos Humanos da Pontificia Universidade Católica de São Paulo, Professora de Direitos Humanos dos Programas de Pós Graduação da Pontificia Universidade Católica de São Paulo
Pages114-131

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Introdução

Como compreender o impacto do sistema interamericano na experiência brasileira? Em que medida a litigância perante o sistema interamericano tem permitido avanços internos no campo dos direitos humanos? Quais são os atores deste ativismo trans nacional em prol dos direitos humanos, quais as suas demandas e quais as respostas do sistema? Quais são os principais desafios e perspectivas do sistema interamericano? São estas as questões centrais a inspirar este estudo.

Inicialmente, será introduzido o sistema interamericano, sua origem, seu perfil e seus objetivos.

Em um segundo momento, será desenvolvida análise a respeito do impacto do sistema interamericano na experiência latino-americana, sobretudo a brasileira.

Por fim, serão destacados os principais desafios e perspectivas do sistema interamericano enquanto eficaz instrumento para o fortalecimento de direitos, a revelar uma força catalizadora capaz de promover avanços e evitar retrocessos no regime doméstico de proteção de direitos humanos.

2. Sistema interamericano de proteção dos direitos humanos: origem, perfil e objetivos

A análise do sistema interamericano de proteção dos direitos humanos demanda sejam considerados o seu contexto histórico, bem como as peculiaridades da região. Trata-se de uma região marcada por elevado grau de exdusão e desigualdade social ao qual se somam democracias em fase de consolidação. A região ainda convive com as reminiscências do legado dos regimes autoritários ditatoriais, com uma cultura de violência e de impunidade, com a baixa densidade de Estados de Direitos e com a precária tradição de respeito aos direitos humanos no âmbito doméstico.

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Dois períodos demarcam, assim, o contexto latino-americano: o período dos regimes ditatoriais; e o período da transição política aos regimes democráticoss marcado pelo fim das ditaduras militares na década de 80, na Argentina, no Chile, no Uruguai e no Brasil2.

Ao longo dos regimes ditatoriais que assolaram os Estados da região, os mais básicos direitos e liberdades foram violados, sob as marcas das execuções sumárias; dos desaparecimentos forçados3; das torturas sistemáticas; das prisões ilegais e arbitrárias; da perseguição polítíco-ídeológica; e da abolição das liberdades de expressão, reunião e associação.

Nas lições de Guillermo O'Donnell:"É útil conceber o pro cesso de democratização como um processo que implica em duas transições. A primeira é a transição do regime autoritário anterior para a instalação de um Governo democrático. A segunda transição é deste Governo para a consolidação democrática ou, em outras palavras, para a efetiva vigência do regime democrático"4. Neste sentido, sustenta-se que, embora a primeira etapa do processo de democratização já tenha sido alcançada na região — a transição do regime autoritário para a instalação de um regime democrático — a segunda etapa do processo de democratização, ou seja, a efetiva consolidação do regime democrático, ainda está em curso.

Isto significa que a região latino-americana tem um duplo desafio: romper em definitivo com o legado da cultura autoritária ditatorial e consolidar o regime democrático, com o pleno respeito aos direitos humanos, amplamente considerados — direitos civis, políticos, econômicos, sociais e culturais5. Como reitera a Declaração de Direitos Humanos de Viena de 1993, há uma relação indissociável entre democracia, direitos humanos e desenvolvimento. Ao processo de universalização dos direitos políticos, em decorrência da instalação de regimesPage 116democráticos, deve ser conjugado o processo de universalização dos direitos civis, sociais, econômicos e culturais. Em outras palavras, a densificação do regime democrático na região requer o enfrentamento do elevado padrão de violação aos direitos econômicos, sociais e culturais, em face do alto grau de exclusão e desigualdade social, que compromete a vigência plena dos direitos humanos na região, sendo fator de instabilidade ao próprio regime democrático.

Ê à luz destes desafios que há de ser compreendido o sistema interamericano de proteção dos direitos humanos.

O instrumento de maior importância no sistema interamericano é a Convenção Americana de Direitos Humanos, também denominada Pacto de San José da Costa Rica.6 Esta Convenção foi assinada em San José, Costa Rica, em 1969, entrando em vigor em 1978.7 Apenas Estados membros da Organização dos Estados Americanos têmo direito de aderir à Convenção Americana. Como observa Thomas Buergenthal: "Em 1978, quando a Convenção Americana de Direitos Humanos entrou em vigor muitos dos Estados da América Central e do Sul eram governados por Ditaduras, tanto de direita, corno de esquerda. Dos 11 Estados-partes da Convenção à época, menos que a metade tinha governos eieitos democraticamente, A outra metade dos Estados havia ratificado a Convenção por diversas razões de natureza política. (...) O fato de hoje quase a totalidade dos Estados latino-americanos na região, com exceção de Cuba, terem governos eleitos democraticamente tem produzido significativos avanços na situação dos direitos humanos nesses Estados. Estes Estados ratificaram a Convenção e reconheceram a competência jurisdicional da Corte"8.

Substancialmente, a Convenção Americana reconhece e assegura um catálogoPage 117de direitos civis e políticos similar ao previsto pelo Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, No universo de direitos, destacam-se: o direito à personalidade jurídica; o direito à vida; o direito a não ser submetido à escravidão; o direito à liberdade; o direito a um julgamento justo; o direito à compensação em caso de erro judiciário; o direito à privacidade; o direito à liberdade de consciência e religião; o direito à liberdade de pensamento e expressão; o direito à resposta; o direito à liberdade de associação; o direito ao nome; o direito à nacionalidade; o direito à liberdade de movimento e residência; o direito de participar do governo; o direito à igualdade perante a lei; e o direito à proteção judicial.9

A Convenção Americana não enuncia de forma específica qualquer direito social, cultural ou econômico, limitando-se a determinar aos Estados que alcancem, progressivamente, a plena realização desses direitos, mediante a adoção de medidas legislativas e outras medidas que se mostrem apropriadas, nos termos do artigo 26 da Convenção. Posteriormente, em 1988, a Assembléia Geral da Organização dos Estados Americanos adotou um Protocolo Adicional à Convenção, concernente aos direitos sociais, econômicos e culturais (Protocolo de San Salvador), que entrou em vigor em novembro de 1999, quando do depósito do 1 lo instrumento de ratificação, nos termos do artigo 21 do Protocolo.10

Em face desse catálogo de direitos constantes da Convenção Americana, cabe ao Estado-parte a obrigação de respeitar e assegurar o livre e pleno exercício desses direitos e liberdades, sem qualquer discriminação. Cabe ainda ao Estado-parte adotar todas as medidas legislativas e de outra natureza que sejam necessárias para conferir efetividade aos direitos e liberdades enunciados.

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A Convenção Americana estabelece um aparato de monitoramento e proteção dos direitos que enuncia, integrado pela Comissão e pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, como será examinado a seguir,

3. Impacto do Sistema Interamericano de Proteção dos Direitos Humanos na experiência latino-americana, sobretudo brasileira

No caso latino-americano, o processo de democratização na região deflagrado na década de 80 é que propiciou a incorporação de importantes instrumentos internacionais de proteção dos direitos humanos pelos Estados latino-americanos. A título de exemplo, note-se que a Convenção Americana de Direitos Humanos, adotada em 1969, foi ratificada pela Argentina em 1984, pelo Uruguai em 1985, pelo Paraguai em 1989 e pelo Brasil em 1992. Já o reconhecimento da jurisdição da Corte Interamericana de Direitos Humanos deu-se na Argentina em 1984, no Uruguai em 1985, no Paraguai em 1993 e no Brasil em 1998. Atualmente constatase que os países latino-americanos subscreveram os principais tratados de direitos humanos adotados pela ONU e pela OEA,

Quanto à incorporação dos tratados internacionais de proteção dos direitos humanos, observa-se que, em geral, as Constituições tatino-americanas conferem a estes instrumentos urna hierarquia especial e privilegiada, distinguindo-os dos tratados tradicionais. Neste sentido, merecem destaque o artigo 75, 22 da Constituição Argentina, que expressamente atribui hierarquia constitucional aos mais relevantes tratados de proteção de direitos humanos e o artigo So, parágrafos 2o e 3o da Carta Brasiíeira que incorpora estes tratados no universo de direitos fundamentais constitucionalmente protegidos11.

As Constituições latino-americanas estabelecem cláusulas constitucionais abertas, que permitem a integração entre a ordem constitucional e a ordemPage 119internacional, especialmente no campo dos direitos humanos. Ao processo de constitucionaiização do Direito Internacional conjuga-se...

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