A integridade da pessoa
Author | José Antonio Farah Lopes de Lima |
Profession | Funcionário do Estado de São Paulo |
Pages | 105-133 |
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Ver Nota1
Suspeitos23 da intenção e da organização de um atentado a Gibraltar, três membros do IRA foram mortos pelas forças de segurança britânicas em uma operação que visava suas prisões. Nesta decisão, a Corte conclui pela existência de uma violação da Convenção em um caso que lhe permite, pela primeria vez, se pronunciar a título principal sobre o direito à vida. Ela afirma o papel central deste direito no texto convencional e, preocupada com sua efetividade, endossa a jurisprudência da Comissão Européia de Direitos Humanos relativa às condições as quais as autoridades públicas podem recorrer à violência mortífera, antes que outras decisões estendam o campo de aplicação do artigo 2 a situações que não são resultantes do emprego da força pelos agentes estatais (L.C.B. c/ Reino Unido, 9 de junho de1998), bem como às relações interpessoais (Osman, infra, n. 10), dando assim à obrigação geral de preservação da vida sua plena dimensão.
I - O caráter fundamental do direito à vida
Relativo a um direito “sem o qual a fruição dos outros direitos e liberdades garantidos pela Convenção seria ilusória” (Pretty c/ Reino Unido, 29 de abril de 2002, §37), insuscetível de derrogação “salvo para os casos de
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mortes resultantes de atos lícitos de guerra” (art. 15, §2) - exceção a inter-pretar levando-se em consideração o direito dos conflitos armados (direito de guerra) -, o direito à vida é o primeiro dos direitos humanos. Seu alto valor não exclui entretanto algumas limitações.
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Se o direito à vida “consagra um dos valores fundamentais das sociedades democráticas que formam o Conselho da Europa” (McCann, §147), não existe porém uma definição clara e objetiva sobre “a vida” e, portanto, sobre seus destinatários.
1. Uma tal hierarquia de valores concerne da mesma maneira o artigo 3 da Convenção, pois estes dois artigos (2 e 3) “estão entre as disposições mais importantes da Convenção” (Z. e al. c/ Reino Unido, 10 de maio de 2001, §109). Mas o direito à vida se beneficia de um estatuto ímpar, na medida em que “entre as disposições da Convenção consideradas primordiais, a Corte, em sua jurisprudência, atribui a preeminência ao artigo 2” (Pretty, §37), consagrando o princípio do caráter sagrado da vida, protegido pela Convenção. A CEDH participa a uma convergência de instrumentos internacionais de proteção dos direitos fundamentais (DUDH, PIDCP) segundo a qual “o direito à vida constitui um atributo inalienável da pessoa humana e ele forma o valor supremo na escala dos valores dos direitos humanos” (Streletz, Kessler e Krenz c/ Alemanha, 22 de março de 2001, §94). O caráter axiológico deste direito cobre ao mesmo tempo um direito subjetivo, protegendo o indivíduo contra as ingerências das autoridades públicas, e uma função objetiva, um princípio diretor da atividade estatal. A este título, se a segunda frase do §1 do artigo 2 implica que o Estado se abstenha de causar a morte “intencionalmente”, a primeira frase - “o direito de toda pessoa à vida é protegido pela lei” - lhe impõe uma obrigação maior: a de implementar as medidas necessárias à proteção da vida. Todavia, as “obrigações positivas” inerentes ao artigo 2 comportam certos limites (infra, n. 10).
2. Da mesma forma que os demais instrumentos internacionais, a CEDH não define “a vida”, em particular o começo da vida. O artigo 2 diz respeito ao ser que já nasceu ou, igualmente, aquele ser a nascer (feto/embrião)? Conclamados a julgar sobre a convencionalidade do aborto, os órgãos da CEDH (Comissão e Corte) são reticentes em sua admissão, seja quanto ao aborto terapêutico, seja quanto ao aborto por conveniência pessoal. Confrontado a uma interdição judiciária de difusão de informações sobre as possibilidades da prática de aborto no estrangeiro, o juiz europeu estima que não é pertinentePage 107
“verificar se a Convenção garante um direito ao aborto ou se o direito à vida, reconhecido pelo artigo 2, vale igualmente para o feto” (Open Door e al. c/ Reino Unido, 29 de outubro de 1992). Uma tal preocupação de respeitar o poder discricionário do Estado no domínio delicado do aborto não exclui que o direito à vida do nascituro possa limitar o direito ao respeito à vida privada da mulher grávida (Bruggermann e Scheuten c/ RFA, 12 de julho de 1977), mesmo que esta seja a principal interessada na continuação ou na interrupção da gravidez (X. c/ Reino Unido).
B) A importância do artigo 2 não exclui a possibilidade de violações ao direito à vida: previsão da pena de morte na legislação penal, bem como a morte consecutiva a um “recurso à força tornado absolutamente necessário” à defesa da ordem pública.
1. O §1 do artigo 2 prevê a hipótese de “execução de uma sentença capital pronunciada por um tribunal no caso em que um delito é punido com a sanção capital pela lei”. Sob reserva de problemas que podem suscitar em relação ao artigo 3 “as circunstâncias em torno” de uma tal sanção capital, a pena de morte é compatível com a Convenção (Soering, §103-104, infra,
n. 13). A adoção do Protocolo 6, texto que proíbe a pena capital, salvo em tempo de guerra ou de perigo iminente de guerra, e que vincula a quase totalidade dos Estados-partes à CEDH, atesta que a pena capital não se harmoniza com “as normas regionais de justiça” (Soering, §102); o Protocolo 13, aberto à assinatura no dia 3 de maio de 2002, interdita a sanção capital em todas as circunstâncias.
2. A cláusula de exceção do §2 do artigo 2 diz respeito às situações possíveis de lesão à vida: defesa de toda pessoa contra a violência ilegal, detenção regular, prevenção de uma fuga e repressão a uma rebelião ou a uma insurreição. Ela “visa os casos onde a morte foi infligida intencionalmente mas também aqueles em que o recurso à força pode conduzir à morte de forma involuntária” (McCann, §148). A importância do direito à vida leva a uma interpretação estrita destas disposições (§147), o que implica um controle rigoroso do uso da violência legal. Examinados a priori sob o ângulo do artigo 3, os atos dos agentes estatais responsáveis por ferimentos que não levaram à morte podem ser considerados como incompatíveis com o objeto e o fim do artigo 2 da Convenção; uma tal hipótese resta marginal na medida em que “somente em circunstâncias excepcionais as lesões corporais infligidas por agentes estatais podem ser analisadas como uma violação do artigo 2Page 108
(Berktay c/ Turquia, 1° de março de 2001, §154, requerente gravemente ferido em seguida a uma queda da varanda de seu domicílio quando de uma perquisição4).
II - A legitimidade do recurso à violência pública mortífera
A Convenção Européia impõe aqui uma obrigação material - evitar o uso excessivo da força legal - e uma obrigação processual - realizar uma investigação aprofundada sobre as circunstâncias de um homicídio imputável a um agente estatal. -
O recurso à violência mortífera “deve ser absolutamente necessário” para respeitar um dos objetivos mencionados no §2 do artigo 2 (McCann, §148).
1. Ele deve em primeiro lugar corresponder às hipóteses enumeradas no §2 do artigo 2. É o caso, quando trata-se de prevenir importantes perdas humanas devido a um atentado (McCann, §195) ou de ir contra uma manifestação violenta. Porém, não é o caso quando trata-se de dispositivos de segurança instalados após a edificação do Muro de Berlim, separando os dois Estados alemães após 1961 para impedir o fluxo incessante de fugitivos da RDA em direção a RFA (Streletz, Kessler e Krenz, §87 e 96).
2. Em segundo lugar, a força empregada deve ser estritamente proporcional à realização do fim pretendido, o que impõe o exame de diversos parâmetros: fim pretendido, perigo para vidas humanas e integridade corporal, possibilidade que a violência utilizada provoque vítimas (Steward, §19, 6 de outubro de 1986). O controle do juiz europeu é estabelecido simultaneamente sobre os atos de execução e sobre a organização - preparação e controle - da operação mortífera (McCann, §194). A Corte exerce um controle rigoroso sobre este tipo de operação (Anguelova c/ Bulgária, 13 de junho de 2002, §110). Ela deve verificar se as autoridades utilizaram todos os meios para se reduzir ao mínimo possível o recurso à força mortífera, que “não deram prova de negligência na escolha das medidas tomadas” (Andronicou e Constantinou c/ Chipre, 9 de outubro de 19975, §29, ação de agentes de forças especiais da polícia para liberar uma jovem sequestrada por seu noivo que ameaçava matá-la e se suicidar em seguida, provocando a morte do casal, crivados por balas) e “levaram estritamente em consideração o direito à vida” das pessoas suspeitas de violência ilegal (McCann, §201). Recusando-se a fazer pesar sobre o Estado e seus agentes “uma carga irreal quePage 109
poderia voltar-se contra suas próprias vidas e a de terceiros”, ela admite a legitimidade do recurso à força para salvar vidas inocentes quando fundada sobre uma convicção honesta considerada, pelas boas razões, como válida no momento do evento, mas que se revela em seguida equivocada (§200; aqui, os militares pensaram de forma equivocada que os terroristas estavam em vias de acionar o detonador de uma bomba). Ela não pretende portanto “podendo refletir com toda tranquilidade, substituir sua própria apreciação sobre a situação àquela dos agentes que devem agir no calor da...
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