Impactos da Nova Doutrina de Segurança Venezuelana na América do Sul

Author1. Clóvis Brigagão - 2. Leonardo Paz Neves
Position1. Notório Saber em Relações Internacionais. Cientista Político, especialista em temas de Paz e Segurança Internacional - 2. Mestrando em Ciência Política pelo IUPERJ, Coord. do Grupo de Trabalho III (Paz e Segurança Regional), do GAPCon.
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Introdução

O tema da corrida armamentista, ora vem à tona do noticiário internacional com intensidade, ora entra no limbo, como se deixara de existir. Fala-se inclusive que depois da grande corrida armamentista da Guerra Fria, teríamos hoje uma “espécie” de soft arms race, na qual a proliferação das armas e de seus negócios continuam a aumentar independente do crescimento dos esforços da comunidade internacional de tentar diminuí-la através dos mecanismos da resolução de conflitos por meios pacíficos. O cenário de fundo continua sendo a volumosa e fabulosa soma de recursos e investimentos, principalmente, gastos pelo atual governo dos EUA, como o recentePage 47pacote de 60 bilhões de dólares para o Oriente Médio. Dessa forma a curva da corrida armamentista no mundo continua em ritmo ascendente.

Nosso artigo será sobre o tema da corrida armamentista na América do Sul. A primeira pergunta é: está ocorrendo, atualmente, na América do Sul o mesmo fenômeno nos moldes de uma clássica ou convencional corrida armamentista que existe nos grandes mercados de armas movidos pelos Estados Unidos, por alguns Estados europeus e pela Rússia. É consenso que a região latino-americana, comparada com regiões como o Oriente Médio, boa parte da região asiática e com o continente africano, está muito aquém de oferecer riscos à paz e segurança internacional, do ponto de vista de uma corrida armamentista. Em geral, na América do Sul mantém certo equilíbrio de poder, em termos de compra e aquisições de armamentos para as Forças Armadas.

Em nosso artigo realizaremos uma análise sobre a atual conjuntura sul-americana para observar e verificar se as políticas de compra de armas e munições feitas pelo governo de Hugo Chávez tem, de fato, contribuído para a desestabilização e para criar possibilidades de uma corrida armamentista na América do Sul. O artigo será dividido em três partes.

Na primeira parte apresentaremos os antecedentes sul-americanos em relação a investimentos militares, as tensões inter-estatais que podem eclodir e as principais medidas de confiança mútua implementadas. Na segunda parte abordaremos a conjuntura atual sobre os gastos militares venezuelanos, que têm causado apreensão regional e internacional sobre o seu crescimento. Iremos detalhar os principais acordos militares realizados pelo governo de Chávez e compará-los com os dados de defesa com outros principais países da região. Por ultimo, as conclusões sobre os possíveis motivos para a efetivação desses acordos e se, de fato eles estariam gerando uma corrida armamentista na região.

I Antecedentes

A história das relações entre Estados vizinhos na América do Sul tem alternado períodos de entendimento e cooperação com outros de tensões, ameaças e o próprio conflito armado. Felizmente, a região soube construir razoável registro de soluções pacíficas para suas controvérsias, principalmente, através da mediação de várias naturezas. Na maior parte dos casos, essas tensões são frutos de disputas fronteiriças mal resolvidas datadas ainda da época dos processos de Independência. Dentre os principais e mais recentes focos de tensão na região destacamos três: o conflito entre Chile e Peru em função de desacordos fronteiriços, em 1975; entre Argentina e Chile relativo à disputa da soberania das ilhas no canal Beagle, em 1978 e a tensão entre a Colômbia e a Venezuela referente ao Golfo da Venezuela em 1987. Apesar do acirramento de ânimos dessas crises, nenhuma delas chegou a resultar em conflitos armados claros.

Contudo, em alguns casos os esforços para conciliação não lograram êxito e as disputas resultaram em conflitos abertos. Aqui destacam-se dois casos, como mais Page 48importantes. O primeiro, entre o Equador e o Peru, em 1981, em função de desacordos acerca da demarcação de fronteiras na Cordilheira do Condor. O conflito durou apenas oito dias e terminou com a assinatura de cessar fogo. Quatorze anos depois (1995) o conflito foi reiniciado, desta vez com enfrentamentos de maior porte. Contudo, a questão mais uma vez foi resolvida através da mediação de terceiros (Argentina, Brasil, Chile e Estados Unidos). A reconciliação veio como resultado do acordo de paz e na demarcação definitiva da fronteira entre os dois países. O segundo conflito ocorreu em 1982, entre a Argentina e o Reino Unido, conflito de natureza extracontinental, sobre a disputa da soberania da Ilhas Falklands/Malvinas. O conflito terminou com a vitória dos britânicos que mantiveram a posse das ilhas.

A ocorrência dessas tensões e conflitos, por vezes, gerou alteração no delicado equilíbrio militar da região, na medida em que os países se armaram para enfrentar suas disputas. Entretanto, ainda que tenha, de fato, ocorrido alguns aumentos significativos nos investimentos militares de alguns países não houve uma preparação para a guerra em escala total. Na realidade o último conflito armado de grande escala no subcontinente foi a Guerra do Paraguai em meados do século XIX. Diante desse recorde de baixa conflitividade inter-Estatal, a região é considerada pacífica. Além disso, há baixo índice de investimentos em defesa, se comparada com os índices das demais regiões como Oriente Médio, África e Ásia. De acordo com a publicação anual do SIPRI, SIPRI Yerabook of 2006, a América do Sul gastou cerca de 24 bilhões de dólares em investimentos militares, cifra essa que correspondeu a apenas 2,4% do gasto mundial do mesmo ano (ênfase nossa)1. Dados como esses ajudam a atestar que tal tipo de militarização não faz parte das prioridades das agendas políticas dos países da região, principalmente com o fim dos regimes militares.

Tal tendência de baixos investimentos em recursos militares é resultado de alguns importantes fatores. Por um lado, existe relativa tranqüilidade dos países quanto aos conflitos com os seus vizinhos. Por outro lado, as mudanças do ambiente internacional contribuíram para significativa intensificação das chamadas “novas ameaças”. Apesar de sempre terem estado presentes, as “novas ameaças” passaram a ganhar mais espaço e terem mais ‘escala’ pela utilização das tecnologias eletrônicas (celulares, internet, etc.), fomentadas pelos recursos da globalização. Na América do Sul, essas novas ameaças passaram a ser consideradas prioritárias na agenda de segurança dos Estados, uma vez que as hipóteses de conflitos inter-estatais praticamente foram reduzidas a sua menor probabilidade. Afinal, existe uma sensação de “tranqüilidade” na região. Essa tranqüilidade foi traduzida pelos parlamentos dos Estados sul-americanos como uma espécie de ´cabo eleitoral´ na limitação de recursos financeiros para programas de reaparelhamento das Forças Armadas. A grande maioria dos Estados canaliza seus investimentos para as chamadas “novas ameaças”, em detrimento de um maior investimento nas Forças Armadas.

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Pode-se exemplificar. Entre os anos de 2000 e 2004 os países que mais investiram em suas Forças Armadas foram o Brasil, Chile e Colômbia. Em valores absolutos a Argentina investiu mais que a Colômbia e Chile nos dois primeiros anos (2000-1). Contudo, a crise econômica que o país viveu em 2001-2002 fez com que seus investimentos em defesa caíssem cerca de 60%: 1% do PIB foi investido em 20042. Apesar de o Brasil ser responsável por cerca de 50% dos gastos em defesa do subcontinente, esse investimento não representa grande fardo para sua economia, que significa 50% do total da região. O Brasil gasta 1,8% do PIB em defesa (dados de 20043). Os casos do Chile e da Colômbia são distintos. Tradicionalmente, esses dois países possuem os maiores investimentos em recursos de defesa, em termos percentuais, da América do Sul. No período 2000-2004, o Chile e a Colômbia investiram em suas Forças Armadas uma média de 2,8% e 3,2% respectivamente, bem acima da média do percentual da região.

Argumentamos que esse alto investimento chileno e colombiano ocorre mais em função de questões de política interna do que de política externa, embora as fronteiras, no caso de defesa, sejam muito flexíveis e interdependentes. No caso do Chile, o alto investimento ocorre em razão da Ley del Cobre Reservado, criada em 1958 e alterada por Pinochet. Ela prevê que 10% dos dividendos da Corporación Nacional del Cobre de Chile (CODELCO), empresa estatal de mineração de cobre, sejam repassados para as Forças Armadas. Pela Ley del Cobre Reservado, as Forças Armadas chilenas contam com grande e constante fonte de investimento em armas, situação bem diferente vivida pelas outras forças sul americanas.

O caso colombiano é mais complexo. Seus governos, desde a década de 1960, convivem com a guerra civil que atenta contra a unidade nacional. Por essa razão gastam mais para que as Forças Armadas possam lidar com os movimentos revolucionários dentro de suas fronteiras.

Outro fator para a “boa fama” da região são os recentes esforços em matéria de desenvolvimento de medidas de confiança mútua. A primeira foi o Tratado de Tlatelolco, de 1967, que proibia as armas nucleares na região. A partir daí, uma série de medidas começou é desenvolvida para dar conta das tensões entre os Estados. A partir da década de 1990 podemos perceber significativo aumento no estabelecimento de novas medidas, sejam multilaterais ou bilaterais. Dois exemplos se destacam. O primeiro é o acordo para uso pacífico da energia nuclear entre a Argentina e o Brasil. Esse o processo foi iniciado com o a Declaração Conjunta para Política Nuclear de 1985 e teve seu ápice em 1991 com a criação da Agência Brasileira-Argentina de Contabilidade e Controle Nuclear (ABACC). Este ciclo foi encerrado com a assinatura do Acordo Quatripartite, em que ambos os Estados, mais a ABACC e a Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA)...

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