As faces da violência na cidade de assis: um estudo histórico

AuthorJoão Henrique dos Santos
PositionEspecialista em Filosofia pela UEL, Mestre e Doutorando em Sociedade e História pela Universidade Estadual Paulista

Um estudo histórico que tenha por objetivo refletir sobre a violência em uma cidade do interior paulista deve ser pautado por uma abordagem analítica que considere as relações entre as diversas manifestações cotidianas dos grupos sociais que a compõem, tanto do ponto de vista da sua organização espacial como econômica, como de suas respectivas percepções e apreciações sobre a criminalidade existentes em seu meio. Numa simples e rápida pesquisa sobre essa questão em Assis, pudemos perceber a existência de um microcosmo significativo de crimes contra a vida - lesão corporal, tentativa de homicídio e homicídio, culposos ou dolosos -, sobremaneira a partir da vigência do Código Penal de 1940.

Informação que resultou em uma pergunta: como pensar historicamente a violência numa localidade com baixos níveis de urbanização e precário desenvolvimento industrial, uma vez que a literatura especializada tem tratado somente da violência em grandes centros urbanos? Assim, ficou claro que para compreender o fenômeno da violência, seu desenvolvimento e suas transformações na cidade de Assis, é necessária uma investigação histórica que se ocupe em revelar rupturas e continuidades do crime em relação às normas de convivência social orientadoras das ações de seus múltiplos agentes, ainda que perpassadas por distinções sociais e culturais.

Não há evidentemente um único significado para a explicação das razões do uso recorrente da violência, tomada e explicada por diferentes agentes sociais que, individuais ou coletivos, apresentam em seus discursos e práticas um conjunto de interseções e clivagens, sempre dependentes de suas posições no mundo social mais amplo ou em seus domínios específicos, como o poder judiciário, policial, político, educacional, religioso.

A violência como transgressão à norma é apenas um de seus multifacéticos significados. Contudo, podemos constatar que a banalização da violência, sobretudo o dano à vida, portanto a violência intersubjetiva, tem sido um dos maiores problemas enfrentados pela sociedade brasileira contemporânea. E se a violência está presente nas relações entre os indivíduos, a punição para os que transgredirem a norma social se dá por meio, na maioria dos casos, da ação do Estado, instância que tende, pelo seu braço judiciário, a minimizar ou desconsiderar as particularidades do meio, social ou cultural, e as distintas relações entre os integrantes dele que, firmadas no tempo e no espaço, são substratos de visões grupais e distintivas sobre o mundo social.

Para o desenvolvimento deste projeto de pesquisa de doutorado, iremos analisar os crimes contra a vida: homicídio, tentativa de homicídio e suas co-extensões; homicídio culposo; lesão corporal dolosa e lesão corporal culposa. Desse modo, ficaremos circunscritos à violência interpessoal e cotidiana que possa demonstrar os momentos de permanências e rupturas históricas quanto às suas manifestações na cidade de Assis.

Se é consenso que vários são os significados da palavra violência, diversos também são os atores sociais envolvidos, tanto individuais como coletivos, em situações conflitivas, mas também em tensas e desiguais relações de poder, tanto entre agentes individuais e grupais quanto entre organizações estatais de controle e punição do crime. Basta pensar nos embates que ocorrem nas barras dos tribunais entre os saberes jurídicos e as visões sociais de mundo, essas quase sempre tomadas e classificadas de antemão pelos agentes estatais como da ordem do subjetivo e da ignorância, portanto contra a objetividade e a razão do Judiciário.

Na sociedade contemporânea brasileira, segundo Paulo Sérgio Pinheiro, as noções de segurança e de vida comunitária foram substituídas pelo sentimento de insegurança e pelo isolamento que o medo impõe.2 Porém, no Brasil, como salientam Sérgio Adorno e Nancy Cardia, não há uma tradição de estudos sobre a violência, crime e direitos humanos.3 E podemos acrescentar a essa afirmativa outro dado, as poucas pesquisas ocupadas com tais temáticas, notadamente produzidas na área de Ciências Sociais, tendem geralmente a privilegiar o estudo sobre a violência dos grandes centros urbanos brasileiros e, sobretudo, em períodos compreendidos a partir de meados da década de 1980.

Já no âmbito da historiografia brasileira, a situação é ainda mais complicada, pois pouco tem sido produzido em termos de estudos históricos sobre a violência e, mesmo assim, os poucos existentes quase sempre restringem sua análise às grandes cidades, com destaque para São Paulo e Rio de Janeiro. Contudo, tanto as pesquisas em Ciências Sociais como as da área de História ocupadas com a temática da violência, tendem em associar níveis significativos de urbanização e industrialização com índices consideráveis de violência e criminalidade.4

Se não é errôneo partir da premissa sobre tal relação entre organização sócio-espacial e violência, porém é justo indagar: o que tem sido a violência em localidades com baixos níveis de urbanização e precária industrialização, quando comparados aos níveis obtidos pelos grandes centros urbanos nacionais?

Indagação que se desdobra em outras questões de ordem morfológica, cujas respostas, assim como a da questão acima, não são encontradas facilmente e de maneira sistematizada na bibliografia especializada. São elas: como a violência se apresenta nas pequenas localidades? Quais os motivos que mais recorrentemente são evocados para o seu uso nessas localidades? Qual o grau de sua intensidade? Quais as dimensões da vida social são mais atingidas pela violência? Quais agentes sociais recorrem mais a ações violentas?

As respostas a essas indagações nos permitirão perceber e historicizar quais são as correlações existentes entre índices de violência e uma localidade pouco urbanizada, cuja população, de forma geral, persiste em pautar sua sociabilidade ou em mantê-la com base em princípios morais e costumes considerados tradicionais ou conservadores, que se expressam em verdadeiros conflitos e tensões entre tradição e modernidade, entre visões grupais empíricas sobre o que é uma comunidade ou uma sociedade. Embates que se refletem em questões e práticas cotidianas, como nas relações existentes entre os gêneros, na instituição matrimonial, na organização da família, nas concepções de honra pessoal e familiar, na convivência com vizinhos, na solidariedade social e grupal, etc. E, ainda mais, a análise dessas relações possibilitarão perceber as formas como os agentes sociais, individuais ou coletivos, em pequenas cidades tem percebido e reagido à normatização do seu cotidiano pelo sistema jurídico-penal, a definição do que é ou não é crime, a punição dos criminosos e o atendimento às vítimas.

Com efeito, tais questões podem ser respondidas analiticamente diante de uma perspectiva local ou regional, sem, contudo, perder de vista a dimensão nacional. Assim uma análise histórica da violência no município de Assis no período compreendido entre as décadas de 1940 e 1960 se justifica, primeiramente, pela expansão dos aparelhos do Estado que, promovida sob o signo da ditadura varguista, resultaria, entre outras medidas, no Código Penal de 1940. Dentro desse processo, a população assisense, assim como a do restante do país, viu-se obrigada a orientar o seu cotidiano por meio de um novo ordenamento jurídico, o qual, ainda, continua em vigor com algumas alterações. Se, por um lado, a vigência do Código Penal de 1940 consolidará um novo saber jurídico, por outro, a população assisense será obrigada a ajustar os seus costumes e comportamentos às novas normatizações sociais, sem se esquecer que tal processo ocorrera em momentos políticos diferentes, ou seja, durante regimes discricionários - o Estado Novo e o início do regime militar -, e um interregno democrático, regido pela Constituição de 1946. Processo que, por certo, só pode ser melhor compreendido numa perspectiva analítica que se ocupe com a historicidade das rupturas e continuidades, as quais se deram nem sempre de forma pacífica ou de acordo com o esperado pelo Estado, e, mais ainda, por meio de uma análise histórica que privilegie, como objeto de estudo, as relações da população assisense, dos sujeitos envolvidos em crimes e dos agentes locais do judiciário com as normas jurídico-penais, as instituições do Judiciário e o Estado.

Em segundo lugar, esta proposta de pesquisa se justifica pelo fato de Assis, no período escolhido para análise, ter apresentado modificações demográficas e econômicas acompanhadas por um índice significativo de crimes. Segundo dados do censo do IBGE de 1940, a cidade possuía 32.959 habitantes, com mais da metade desses morando na zona rural.5 O município começa a destacar-se regionalmente, sobretudo, do ponto de vista econômico, consolidando no período seu desenvolvimento não somente no setor primário e no terciário, nos quais até então não possuía uma produção superior a das cidades circunvizinhas, como Paraguaçu Paulista e Palmital, mas também um crescimento destacado no ramo dos transportes, notadamente com o funcionamento da Estrada de Ferro Sorocabana, que empregava mais de 400 funcionários em atividades diretas. No entanto, Assis passaria a contar décadas depois, segundo dados do censo de 1970, com uma população de aproximadamente 57.034 habitantes, sendo que, ainda, uma parcela significativa desses morava na zona rural.

Em levantamento preliminar com fins de subsidiar a elaboração deste projeto de pesquisa, consultamos os processos-crimes da Comarca de Assis. Foram examinados vários processos-crimes elaborados e que tramitaram entre as décadas de 1940 a 1960, consulta que nos permitiu perceber a existência de um número médio de 18...

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