O Estatuto do Enclave de Cabinda à Luz do Direito Internacional Público

AuthorCatherine Maia - Robert Kolb
PositionProfessora na Faculdade de Direito da Universidade Lusófona do Porto (Portugal) - Professor na Faculdade de Direito da Universidade de Genebra (Suíça)
Pages29-71
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O Estatuto do Enclave de Cabinda à Luz do Direito Internacional Público
O Estatuto do Enclave de Cabinda à Luz do Direito Internacional Público
Catherine Maia1
Robert Kolb2
Resumo
Na medida em que assistimos, nestas últimas décadas, ao ressurgimento
de movimentos independentistas por todo o mundo, revela-se particularmente
pertinente analisar o estatuto do enclave de Cabinda. Em 2010, a ocorrência de um
violento ataque homicida contra a equipa de futebol do Togo durante o Campeonato
Africano das Nações evidenciou os argumentos do principal movimento separatista,
que reivindicou a independência do território relativamente a Angola. Esses
argumentos podem ser reconduzidos a três grupos: em primeiro lugar, Cabinda
teria constituído no século XIX um Estado independente com o qual Portugal havia
celebrado tratados de protetorado; em segundo lugar, seria nulo o Acordo de Alvor,
de 1975, pelo qual Portugal aceitou a incorporação de Cabinda no território do
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teria um direito à autodeterminação. A análise destes argumentos à luz do direito
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Abstract
While we are witnessing, in recent decades, the revival of independent
movements all over the world, it is interesting to analyze the status of Cabinda
enclave. In 2010, a violent murderous attack against the Togolese football team
during the African Cup of Nations highlighted the arguments of the main separatist
movement that claimed the independence of the territory towards Angola. These
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Cabinda would have constituted an independent state with which Portugal
would have signed protectorate treaties; secondly, would be null the 1975 Alvor
Agreement by which Portugal has accepted the incorporation of the territory of
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perspective, every people would have a right to self-determination. The analysis of
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1 Catherine Maia é Professora na Faculdade de Direito da Universidade Lusófona do Porto (Portugal).
Também leciona no Instituto de Estudos Políticos (Sciences Po), na Universidade Católica de Lille e na
Escola Normal Superior Cachan (França).
2 Robert Kolb é Professor na Faculdade de Direito da Universidade de Genebra (Suíça).
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30 VIII ANUÁRIO BRASILEIRO DE DIREITO INTERNACIONAL
the enclave as an Angolan province.
Résumé
Alors que l’on assiste ces dernières décennies au réveil de mouvements
indépendantistes partout dans le monde, il est intéressant de s’interroger sur le statut
de l’enclave du Cabinda. En 2010, une violente attaque meurtrière contre l’équipe
de football du Togo lors de la Coupe d’Afrique des Nations a mis en lumière les
arguments du principal mouvement séparatiste ayant revendiqué l’indépendance
de ce territoire par rapport à l’Angola. Ces arguments peuvent être classés en trois
groupes : tout d’abord, le Cabinda aurait constitué au XIXe siècle un État indépendant
avec lequel le Portugal aurait conclu des traités de protectorat ; ensuite, serait nul
l’Accord d’Alvor, de 1975, par lequel le Portugal aurait accepté l’incorporation
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une perspective contemporaine, chaque peuple a le droit à l’autodétermination.
L’analyse de ces arguments à la lumière du droit international viendra conforter le
statut de province angolaise de l’enclave.
Sumário
1. Introdução: Factos, Contexto e Argumentos; 2. A Vertente Pacta Sunt
Servanda: A Celebração dos Tratados de Chinfuma (1883), Chicambo (1884) e
Simulambuco (1885); 2.1 Princípios Gerais Relativos ao Direito Aplicável; 2.2.
Os Factos Relevantes: A História Colonial Relativa a Cabinda; 2.3. O Direito: A
Aquisição de Títulos Sobre o Território no Direito Internacional do Século XV ao
Século XIX; 2.4. O Valor Jurídico dos Tratados de Protetorado Colonial Celebrados
entre Portugal e os Príncipes Indígenas Cabindas; 3. A Vertente Relativa à Nulidade:
O Valor Jurídico do Acordo de Alvor de 1975 sobre a Acessão à Independência de
Angola; 3.1. Aspetos Gerais; 3.2. Nulidade em Direito Internacional; 3.3. Nulidade
em Direito Interno; 4. A Vertente da Autodeterminação: O Direito do “Povo Cabinda”
a Dispor de Si Mesmo; 4.1. Aspetos Gerais; 4.2. O Direito à Autodeterminação
dos Povos: Externa e Interna; 4.3. O Alegado “Direito à Secessão” em Caso de
Perseguições; 5. Conclusões
1. Introdução: Factos, Contexto e Argumentos
Em 4 de fevereiro de 2011, a FLEC (Frente para a Libertação do Enclave
de Cabinda) proclamou unilateralmente a independência de Cabinda (província de
Angola), no seio do Parlamento Europeu, em Bruxelas. Contudo, esta declaração
não foi seguida por nenhum reconhecimento de Cabinda como Estado independente.
Em 2010, a FLEC havia reivindicado a responsabilidade por ataques violentos
contra a equipa do Togo durante a Copa Africana de Nações de futebol. Facto
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O Estatuto do Enclave de Cabinda à Luz do Direito Internacional Público
este, que valeu-lhe a condenação. Assim, na 14ª Cimeira de Chefes de Estado
e de Governo da União Africana, em Adis Abeba (Etiópia), que decorreu entre
31 de janeiro e 2 de fevereiro de 2010, foi adotada uma resolução condenando
veementemente o ataque terrorista perpetrado no mês precedente na província
angolana de Cabinda3. Deste modo, ao invés do reconhecimento como um novo
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movimento terrorista, entre outros pela maior organização política do continente,
designadamente a União Africana.
O ataque referido contra a equipa do Togo desencadeou uma ação judicial.
Em 29 de janeiro de 2010, o Estado togolês decidiu queixar-se em França por ato
de terrorismo e assassinatos contra a FLEC bem como contra o seu representante,
de nacionalidade francesa. Também Angola apresentou uma queixa em 26 de abril
de 2010 e tem sido aberto um inquérito pelo Ministério Público de Paris.
A FLEC move-se assim entre uma revindicação à secessão e processos judiciais
por atos de terrorismo. No presente artigo, será juridicamente analisado, à luz
do direito internacional público, a primeira vertente deste díptico. Nenhum
comentário especial é necessário sobre a segunda vertente. O inquérito criminal
está em curso e as condenações internacionais dos atos de violência terrorista no
Cabinda permanecem.
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a independência de Cabinda, ou seja, para fundamentar um direito de secessão
com base no princípio da autodeterminação dos povos. São três os argumentos
formulados em termos jurídicos. Eventuais argumentos políticos invocados no
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de analisar a situação estritamente do ponto de vista do direito.
O primeiro argumento consiste em defender a ideia de que Cabinda teria
sido no século XIX um Estado independente com o qual Portugal celebrou tratados.
Esses tratados teriam colocado Cabinda sob um regime de protetorado, o que
vedava a possibilidade de a potência protetora proceder, posterior e unilateralmente,
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diz respeito ao cumprimento dos tratados, de acordo com o princípio pacta sunt
servanda.
O segundo argumento baseia-se na nulidade do Acordo de Alvor de 1975,
pelo qual Portugal aceitou a incorporação de Cabinda no território do novo Estado
independente angolano, por força de uma alegada violação não só dos tratados de
protetorado celebrados, mas igualmente das disposições ainda em vigor da sua
própria Constituição de 1933, os quais reconheciam o enclave como uma província
ultramarina distinta de Angola. Este argumento respeita, portanto, à nulidade de um
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ainda, com a Constituição de uma das partes contratantes.
O terceiro argumento deriva do segundo. Em consequência da nulidade
3 Assembly/AU/Dec.273(XIV), Rev.1.
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