Eficácia e aplicabilidade dos tratados em matéria tributária no Direito Brasileiro

AuthorValério de Oliveira Mazzuoli
PositionProfessor de Direito Internacional Público na Faculdade de Direito da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT). Professor convidado de Direito Constitucional Internacional nos cursos de Especialização do Centro de Direito Internacional (CEDIN), da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
Pages174-182

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1. Introdução

Este trabalho visa estudar a eficácia e aplicabilidade dos tratados em matéria tributária no nosso ordenamento jurídico interno, à luz das regras do Direito Internacional Público e do Direito Constitucional brasileiro.

Para tanto, num primeiro momento, partiu-se da concepção da primazia do Direito Internacional sobre o Direito interno estatal para, posteriormente, verificar o alcance do art. 98 do Código Tributário Nacional (que cuida dos tratados em matéria tributária) e quais as conseqüências desse mesmo dispositivo na questão das isenções heterônomas de tributos estaduais e municipais pela via dos tratados internacionais.

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2. Propositura do problema

De acordo com a doutrina monista internacionalista - que adotamos e sustentamos como correta - o Direito Internacional Público encontra-se em posição de absoluta primazia sobre o Direito interno estatal.1 Tal primazia atribui aos tratados ratificados pelo Brasil (quaisquer que sejam) um status hierárquico superior a toda a legislação doméstica do país. Assim, depois de publicados, os tratados passam a ter força normativa no nosso ordenamento interno, revogando as disposições ordinárias em contrário e devendo ser observados pelas leis que sobrevenham. Mas frise-se que a lei geral não sucumbe diante do tratado por ser este posterior ou especial em relação a ela. A prevalência dos tratados internacionais sobre as leis nacionais dá-se não em razão de sua posterioridade ou eventual especialidade, mas sim em decorrência de seu caráter supra-legal, que impede sejam eles revogados por lei posterior ou especial. A lei interna posterior, assim, é ineficaz (ou inaplicável) em relação ao tratado anteriormente firmado, devendo os tribunais abster-se de aplicar tal lei enquanto o respectivo tratado vincular o Estado.2 A recusa do Poder Judiciário em aplicar os tratados ratificados pelo governo leva inclusive à responsabilização do Estado no plano internacional. Ademais, os tratados internacionais têm sua forma própria de revogação, que é a denúncia, só podendo ser alterados por outras normas de natureza idêntica ou de categoria superior, internacionais ou supranacionais, jamais por leis internas. Para o Direito Internacional Público os compromissos exteriores assumidos pelo Estado são superiores às obrigações assumidas pelo mesmo no plano interno, não sendo possível a alegação de que o eventual não-cumprimento de um tratado se daria em virtude de decisões judiciais sustentando a sua inconstitucionalidade ou da existência de norma superveniente substancialmente contrária ao conteúdo do acordo. Pretender que, por meio de legislação interna superveniente, se possa revogar tratados internacionais, significa admitir que um Estado, por si só, tem o poder de modificar o conteúdo de compromissos internacionalmente assumidos, sem o consentimento das demais partes contratantes, o que não é lógico e tampouco jurídico.

No Brasil, essa doutrina que se acaba de expor foi expressamente reconhecida, em matéria tributária, pelo art. 98 do Código Tributário Nacional, que passaremos a estudar em seguida. Mas frise-se que a análise desse dispositivo cingir-se-á essencialmente aos aspectos que interessam ao Direito Internacional Público, não sendo aqui - e tampouco esse é o nosso propósito - o lugar de se estudar questões de índole propriamente tributária, dentre as quais talvez as mais importantes sejam as ligadas à eliminação da dupla ou múltipla tributação no plano internacional.

3. O artigo 98 do Código Tributário Nacional

Dentro do seu Livro Segundo, Título I, Capítulo I, Seção II, o Código Tributário Nacional (Lei 5.172, de 25 de outubro de 1966) versou sobre os tratados em matéria tributária no seu art. 98, que assim dispõe:

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"Os tratados e as convenções internacionais revogam ou modificam a legislação tributária interna, e serão observados pela que lhes sobrevenha".

Tal dispositivo, como se percebe nitidamente, atribui primazia aos tratados internacionais em matéria tributária sobre toda a legislação tributária interna, apontando para o fato de os tratados revogarem ou modificarem as normas domésticas sem, contudo, poderem ser revogados por estas, o que evidentemente lhes atribui um status de supra-legalidade absoluto dentro do sistema jurídico-tributário nacional, em respeito à regra pacta sunt servanda inscrita no art. 26 da Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados.3 Aliás, verdade seja dita: o art. 98 do CTN é o único dispositivo existente, em toda a legislação brasileira, a atribuir expressa primazia do tratado sobre a nossa legislação doméstica.

O comando do dispositivo se dirige aos três poderes tributantes: União, Estadosfederados e Municípios. E uma vez incorporado o tratado ao ordenamento jurídico pátrio, a revogação ou modificação da legislação tributária das unidades federadas e das municipalidades se opera automaticamente, não sendo necessária qualquer ação legislativa desses mesmos entes para tanto. Daí se entender então que o tratado, concluído pela República Federativa do Brasil, salvo disposição convencional em contrário, atinge internamente a União e os demais componentes da República (Estados e Municípios) de forma imediata, produzindo efeitos erga omnes e ex tunc.4

A expressão "legislação tributária" referida pelo art. 98 do CTN tem o seu alcance determinado pelo art. 96 do mesmo Código, compreendendo "as leis, os tratados e as convenções, os decretos e as normas complementares que versem, no todo ou em parte, sobre tributos ou relações jurídicas a eles pertinentes". É sobre tais normas -inclusive, como se vê, sobre as complementares - que os tratados em matéria tributária se sobrepõem, segundo o comando do art. 98.

A compatibilização do art. 98 do CTN com o sistema jurídico-tributário brasileiro, contudo, nunca se deu de forma tranqüila, não tendo ele passado imune às críticas de praticamente toda a doutrina tributarista nacional. A primeira delas diz respeito à sua redação, uma vez que - segundo a doutrina especializada - tais tratados não revogam propriamente a legislação tributária interna, mas sim sobre ela prevalecem no caso concreto. Entendem os autores tributaristas que a expressão revogação foi mal utilizada pelo Código, que deveria ter se referido à derrogação da legislação tributária interna pelos tratados.5 Em verdade, o que ocorreu é que o CTN preferiu se valer dePage 177uma expressão que é gênero e não da espécie correta, que realmente seria o termo "derrogam". Como se sabe, "revogação" é gênero do qual fazem parte duas espécies: a ab-rogação (revogação total de uma lei) e a derrogação (revogação parcial dessa mesma lei). Assim, quando o CTN se utiliza da expressão-gênero revogação, deve o intérprete ler aí que a referência diz respeito à sua espécie derrogação, em homenagem à precisão técnica.

A segunda crítica formulada pela doutrina ao art. 98 do CTN - esta sim com interesse ao Direito Internacional - diz respeito à sua aparente inconstitucionalidade. Objeta-se ser inconstitucional tal dispositivo, pelo fato de ter ele atribuído a uma certa categoria de normas um grau hierárquico (superior) que somente o texto constitucional poderia atribuir.6 Nesse sentido, não caberia à legislação complementar (como é o caso do Código Tributário Nacional que, como é sabido, foi recepcionado pela Carta Magna de 1988 com status de "lei complementar") disciplinar qualquer hierarquia de normas sem autorização da Constituição. Para nós, equivoca-se quem assim entende, pois tal norma faz exatamente o papel que cabe à lei complementar, que é o de complementar as normas constitucionais, direcionando seu comando à lei ordinária, a fim de que esta observe (na dicção do art. 98 em comento) o comando estabelecido pelos tratados. As leis complementares - como é o caso do CTN - são expressamente recebidas pelo texto constitucional (art. 59, inc. II) como espécies normativas capazes de disciplinar, de forma detalhada e uniforme, o sistema tributário nacional, aí inclusa a deliberação sobre a hierarquia normativa das normas convencionais em matéria tributária no Direito brasileiro.7 O que ocorre...

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