A efetividade dos direitos

AuthorJosé Antonio Farah Lopes de Lima
ProfessionFuncionário do Estado de São Paulo
Pages65-96

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Seção I - A teoria das obrigações positivas
I - Noção
1. Airey c/ Irlanda, 9 de outubro de 1979

A Senhora Airey12, não pôde, na ausência de assistência jurídica para assuntos relativos ao direito de família, se engajar em um processo com o fim a uma separação de corpos. Seus recursos financeiros sendo insuficientes não lhe permitiram assumir o custo de tal processo. Concluindo ao mesmo tempo à violação do artigo 6, §1, pela falta de um direito de acesso efetivo a um tribunal, e à violação do artigo 8, devido à impossibilidade pela requerente de ter acesso à separação judiciária, o juiz europeu sanciona a falha do Estado irlandês em respeitar e cumprir sua “obrigação positiva” de fornecer à requerente uma assistência judiciária gratuita no contexto de um processo civil, a fim de que a requerente possa, em razão da complexidade do litígio, defender sua causa, com o objetivo de ser dispensada de seu dever de cohabitação.

A decisão Airey coloca os fundamentos da noção de “obrigação positiva” (I) e acarreta um movimento jurisprudencial fecundo. Apesar da Corte Européia se recusar a elaborar uma teoria geral das obrigações positivas decorrentes da Convenção, ela estende de forma singular a amplitude das obrigações positivas (II) e define as modalidades do controle de seu respeito (III).

I - A noção de “obrigação positiva” 3

A decisão Airey convida a ultrapassar a distinção superficial entre os direitos civis e políticos e os direitos econômicos e sociais. É de se notar que

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a Corte Européia aceita seu afastamento da literalidade do texto convencional de 1950, donde ela justamente notou que ele anuncia, “para a maioria dos direitos civis e políticos”, “uma obrigação de abstenção ou de não-ingerência”, para se posicionar sobre o terreno de um “direito à...”, em espécie, de um direito à assistência judiciária, quer dizer, de um direito de se exigir do Estado uma prestação positiva.

  1. A preocupação de se conferir ao sistema de salvaguarda e aos direitos garantidos pela Convenção uma verdadeira efetividade está na essência da marcha realizada pelo juiz europeu, que expõe sua concepção de direitos individuais: “trata-se de proteger direitos não teóricos ou ilusórios, mas concretos e efetivos” (§24). Refutando a existência de uma separação rígida entre a esfera de alcance da Convenção e aquela dos direitos econômicos e sociais, a Corte constata que muitos dos direitos civis e políticos possuem extensão de caráter econômico e social e se reserva a possibilidade de interpretar neste sentido os direitos garantidos pela Convenção (§26). O juiz europeu entende assim fornecer ao indivíduo as condições materiais necessárias ao exercício de seus direitos, em espécie, o direito efetivo de acesso a um tribunal. A realização dos direitos que são anunciados na Convenção pode então exigir “medidas positivas” por parte do Estado, que não poderia se contentar em restar passivo. A “obrigação positiva” que pesa sobre o Estado é então uma “obrigação de fazer”, tradicionalmente associada aos direitos econômicos e sociais, ou seja, uma obrigação de se adotar medidas razoáveis e adequadas para proteção dos direitos que o indivíduo retira da Convenção (Lopez Ostra, §51, infra, n.3).
    B) Porquanto ela é necessária à efetividade do direito, a obrigação positiva é, segundo o juiz europeu, inerente ao direito garantido, ou seja, consubstancial a este direito. O caráter impreciso do conteúdo de um direito favorece a construção jurisprudencial. Por exemplo, o direito ao respeito da vida privada e familiar (art. 8): apoiando-se na falta de precisão da noção de “respeito”, donde a Corte dirá que ele significa mais que “reconhecer” ou “tomar em consideração” (Campbell e Cosans c/ Reino Unido, 25 de fevereiro de 1992), a Corte Européia afirma que se o artigo 8 tem essencialmente por objeto de proteger o indivíduo contra ingerências arbitrárias do poder público, ele não se contenta entretanto de exigir do Estado somente uma abstenção a tais ingerências. A este engajamento, eminentemente “negativo”, podem se juntar obrigações positivas inerentes ao respeito efetivo da vida familiar (Marckx, §31). Mais amplamente, o juiz europeu descobre no artigo 1° da Convenção uma obrigação positiva inerente ao engajamento geral pelos

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    Estados de reconhecer à toda pessoa pertencente à sua jurisdição os direitos e liberdades consagrados pela Convenção em geral. Ampliando sua esfera de atuação, a Corte afirma que a tomada em conta do justo equilíbrio entre o interesse geral e os interesses do indivíduo é decisiva para se determinar se e quando existe uma obrigação positiva do Estado (C. Goodwin, §72). A Corte, portanto, reconhece a possibilidade de aplicar a teoria das obrigações positivas a todo direito e confere a tal teoria uma aplicação de caráter genérico.

    II - A amplitude das obrigações positivas
    O conceito de “obrigações positivas” acarreta uma redefinição das obrigações dos Estados membros à Convenção. A responsabilidade do Estado pode ser engajada não somente pelo fato de sua ingerência “ativa” sobre este ou aquele direito, mas também, através da teoria das obrigações positivas, pelo fato de sua ingerência “passiva”, ou seja, em razão da não adoção de medidas positivas que a concretização de um determinado direito exige. Esta ingerência “passiva” cobre duas modalidades, pois ou a abstenção do Estado acarreta em si uma lesão ao direito garantido ou esta omissão permite a um terceiro sua imisção no direito garantido. A decisão Airey ilutra a primeira modalidade mencionada. A Corte afirma que “um obstáculo de fato pode dificultar a aplicação da Convenção assim como um obstáculo jurídico” (§25). Em outras palavras, a ingerência “passiva” pode resultar da carência do Estado tanto na não adoção de medidas positivas de ordem material - por exemplo, a ausência de cuidados médicos fornecidos a um detento (art. 3: Ilhan c/ Turquia, 27 de junho de 2000) - quanto de ordem normativa - assim, por exemplo, a ausência de uma legislação protetora do estatuto jurídico de uma criança nascida fora do casamento (art. 8: Marckx, préc.). A Corte pretende fornecer aos indivíduos as condições jurídicas e materiais necessárias ao exercício real das liberdades proclamadas.

    Através das obrigações positivas, é a inércia do poder público - qualquer que seja a autoridade em causa (legislativa, administrativa ou judiciária) - que será suscetível de sofrer uma sanção. Quanto à omissão legislativa, por exemplo, mesmo se o Estado possui em tese o poder de escolher os meios para assegurar a execução de uma decisão que o condene por violação dos direitos garantidos pela Convenção (Marckx, §58), uma constatação de uma falta (violação) tendo como fonte um déficit legislativo não lhe deixará outra opção que aquela de colocar sua legislação em conformidade com a Convenção para que possa respeitar a obrigação decorrente do art. 46 da Convenção.

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  2. Pelo uso quase sistemático da teoria das obrigações positivas, que se desenvolve hoje sobre uma gama ampla de direitos, o juiz europeu enriqueceu sensivelmente o conteúdo dos direitos enunciados pela Convenção e, desta maneira, ampliou o campo das obrigações a serem respeitadas pelos Estados partes.
    1. A jurisprudência européia testemunha de uma grande difusão das obrigações positivas materiais, que implicam a adoção de medidas próprias a permitir a realização efetiva do direito garantido pela Convenção: o direito à instrução ( Caso linguístico belga, infra, n.8), o direito ao respeito à vida privada e familiar (Marckx), o direito a um processo equitativo (Guincho c/ Portugal, 10 de julho de 19844), o direito a eleições livres (Mathieu-Mohin e Clerfayt), o direito à liberdade de reunião (Plattform “Arzte fur das Leben”), o direito à liberdade sindical (julgado Gustafsson), o direito à vida (L.C.B. c/ Reino Unido, 9 de junho de 19985), entre outros, testemunham um movimento de generalização das obrigações positivas que vai no sentido do “desenvolvimento dos direitos do homem” (Preâmbulo, al. 4). Sem dúvida, é o conteúdo do direito ao respeito à vida privada e familiar que mais se beneficiou deste enriquecimento jurisprudencial, pois a partir de agora ele integra a obrigação de oferecer a uma criança nascida fora do casamento os meios de levar uma vida familiar normal (Marckx, préc. e Johnston), a obrigação de permitir aos esposos a condução de uma ação judicial de separação de corpos (Airey), a obrigação a efetivar medidas para reunir um pai (ou mãe) a seu filho (Eriksson c/ Suécia, 22 de junho de 19896), entre outras obrigações de âmbito familiar.
    2. Além disso, o juiz europeu “descobriu” obrigações positivas processuais no seio dos direitos materiais - direito à vida, interdição à tortura, liberdade de expressão -, realizando uma duplicação das obrigações positivas a serem respeitadas pelo Estado: por exemplo, obrigação ativa material de proteção à vida e obrigação processual de proceder a uma investigação oficial, aprofundada e efetiva em vista da identificação e da punição dos responsáveis em caso de recurso à força por agentes estatais acarretando a morte de civis (McCann, infra, n. 9). Dentro desta lógica, a Corte Européia procede a um...

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