Os direitos processuais

AuthorJosé Antonio Farah Lopes de Lima
ProfessionFuncionário do Estado de São Paulo
Pages151-224

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Ver Nota1

Seção 1 - O direito a um processo equitativo (justo)
I - Campo de aplicação
A) Matéria cível
1. Matéria disciplinar
1. 1 Le Compte, Van Leuven e De Meyere c/ Bélgica, 23 de junho de 1981

A2 introdução de processos disciplinares realizados perante os Conselhos e Ordens profissionais (Conselho de Medicina, Ordem dos Advogados, etc.) no campo de aplicação do artigo 6, § 1 da Convenção Européia de Direitos Humanos é evidente neste momento. Mas assim não o era até a chegada da decisão Le Compte, Van Leuven e De Meyere c/ Bélgica. Três médicos punidos com a sanção de suspensão do exercício da medicina por falta deontológica para com a profissão reclamavam sobretudo de não poderem se beneficiar de um procedimento público diante das jurisdições disciplinares belgas. Eles receberam ganho de causa perante a Corte Européia. Porém, como questão preliminar, a Corte deveria determinar se tais procedimentos disciplinares se enquadravam no conceito de “contestação sobre direitos e obrigações de caráter cível”. Tal questão era delicada em relação a certas profissões que possuem traços privados e públicos simultaneamente (a medicina e a advocacia, por exemplo). A Corte poderia qualificar tais contestações de ordem profissional como de caráter cível? Respondendo de maneira afirmativa, a Corte estabelece a aplicação em matéria cível do artigo 6, § 1 aos procedimentos disciplinares diante dos Conselhos e Ordens profissionais. Tal aplicação recebe confirmação permanente por parte da Corte.

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I - Uma aplicação confirmada de modo permanente pelo juiz europeu Apoiando-se sobre os critérios gerais e autônomos que determinam as contestações relativas aos direitos e obrigações cíveis, concebidos anteriormente (Ringesein c/ Áustria, 16 de julho de 1971), a Corte submete os procedimentos disciplinares ao artigo 6, § 1 da Convenção, admitindo que esta subsunção é vasta, mas não ilimitada.

  1. A contestação deve ser entendida num senso material, ela deve ser concreta e séria, ela discute tanto sobre o exercício de um direito quanto sobre a extensão das modalidades de seu exercício, ela pode trazer questões de fato ou de direito. Assim, um simples conflito em torno de uma falta profissional deontológica se assimila a uma tal contestação.

Esta contestação deve ter um liame com os direitos e obrigações de caráter cível. Qualificada de atividade privada, a atividade médica implica o exercício de direitos e obrigações de caráter cível. Idem para uma contestação de um advogado que reclamava perante a Ordem de Advogados a qual era inscrito sua reintegração a fim de poder voltar a exercer sua profissão.
B) Deste modo, nem todos os processos disciplinares se subsumem ao artigo 6, § 1. Assim, aqueles que não estão em causa o direito de continuar a exercer uma profissão; também, aqueles onde se discutem as condições de admissão a um título que permite o exercício de uma profissão (por exemplo, condições de admissão à Ordem dos Advogados e seus critérios de valoração de conhecimento e de experiência (estágios) relativa à profissão).

Esta jurisprudência européia foi prontamente aceita pela jurisdição judiciária francesa (Corte de Cassação - Primeira Câmara Cível, 10 de janeiro de 1984, Rennemann, JCP, 1984, II, 20210), mas aceita tardiamente pela jurisdição administrativa (Conselho de Estado- 23 de março de 1998, Sociedade Fiducial Expertise).

2. Matéria social
2. 1 Feldbrugge c/ Países Baixos, 29 de maio de 1986

Com3 a decisão Demeuland c/ Alemanha, proferida no mesmo dia, concernente ao sistema alemão de seguridade social contra acidentes do trabalho, a decisão Feldbrugge, relativa ao sistema holandês de seguro-doença, aparece

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como o início de uma extensão sempre crescente do campo de aplicação do artigo 6, § 1 da Convenção. Este movimento foi muito significativo, ainda mais se considerarmos que a Corte foi de encontro ao relatório realizado pela Comissão Européia de Direitos Humanos, em 9 de maio de 1984, que descartava tal aplicação em matéria de seguridade social.

Privada de seu auxílio-doença, a Senhora Feldbrugge entrou com um requerimento diante de uma Comissão de Recursos. Rejeitado tal requerimento, ela recorre à Comissão Central de Recursos. Não recebendo o apoio de tal Comissão, ela teria sua revanche perante a Corte Européia de Direitos Humanos, que condena os Países Baixos por violação ao artigo 6, § 1 da Convenção. Ela então possibilita à Corte Européia de fazer evoluir o método e os critérios de determinação do campo de aplicação deste artigo e de integrar o contencioso de seguridade social, abrindo a via a um verdadeiro direito de seguridade social no seio da matéria cível do artigo 6, § 1.

I - Evolução do método e dos critérios de determinação do campo de aplicação do artigo 6, § 1
Até a decisão Feldbrugge, a Corte explorava unicamente os métodos e os critérios extraídos das decisões Ringesein c/ Áustria, de 23 de junho de 1973, e Konig (supra, n. 4). Recusando-se a dar uma definição abstrata sobre a noção de “direitos e obrigações de caráter cível”, ela lhe atribui um sentido autônomo e, portanto, europeu. Desde a decisão Feldbrugge, ela acrescenta a importância do equilíbrio entre os aspectos de direito público e de direito privado do direito em litígio, considerando especialmente o caráter pessoal e patrimonial deste direito.

  1. Mais ainda do que o contencioso disciplinar, este litígio em matéria de seguridade social absorve aspectos de direito público e privado, sendo muito difícil separá-los. A proteção social sendo uma forte característica do Estado-providência, esta presença fundamental do poder público foi considerada pelos juízes minoritários como um fator determinante da exclusão da proteção social da esfera da matéria cível no sentido do artigo 6, § 1. Além do mais, segundo estes juízes minoritários, considerando os trabalhos preparatórios de elaboração da Convenção, a introdução do termo “cível” foi ditada por uma legítima preocupação de limitação do campo de aplicação do artigo 6, § 1. Assim, este artigo não poderia ser objeto de uma interpretação extensiva ao infinito. Eles não receberam apoio de suas idéias por parte dos juízes majoritários.

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    Sem dúvida, a vontade da Corte Européia de submeter o contencioso de seguridade social às garantias de um processo equitativo foi muito mais forte. Com efeito, o método adotado leva em conta os aspectos públicos - regulamentação e controle pelos órgãos estatais, caráter obrigatório do seguro-doença, a responsabilidade do poder público em relação à proteção social - e os aspectos privados - o caráter pessoal e patrimonial do direito, o vínculo com o contrato de trabalho, os pontos em comum com o seguro de direito privado - do contencioso de seguridade social, para finalmente fazer predominar os aspectos privatísticos. O raciocínio empregado pela Corte não se apresenta de forma muito clara, considerando-se a adoção de um método pragmático e bastante casuístico.

    A Corte emprega o mesmo método para inserir o contencioso de contribuições sociais no campo de aplicação do artigo 6, §1, matéria cível (Schouten e Meldrum c/ Países Baixos, 9 de dezembro de 1994, § 49). Para descartar a relevância dos aspectos públicos, ela indica que o fato de existir uma certa intervenção do Estado na matéria não é suficiente para inseri-la no campo de direito público, e que as contribuições sociais são análogas às contribuições de seguro obrigatórias, onde a impossibilidade pelos interessados de evitar seu pagamento não é suficiente para submetê-las ao direito público. Para fazer prevalecer os aspectos de direito privado, ela acorda uma importância maior ao liame entre as cotizações sociais em questão e o contrato de trabalho, bem como a analogia entre os regimes de seguridade social e os seguros privados (§ 59).
    B) Sem renunciar a seu pragmatismo, a Corte traz um ajuste ao seu método...

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