Direito Segunda Meditação: Sobre o Conceito do Direito

AuthorFriedrich Viktor Kratochwil
Pages157-178
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Segunda Meditação: Sobre o Conceito do Direito
Segunda Meditação: Sobre o Conceito do Direito
Friedrich Viktor Kratochwil
Tradução: Marina Todde Vilela
Luiza Santana de Oliveira
Introdução
As nações vivem em anarquia por não ter soberania para impor umas às
outras suas leis. Este é o esteio que orienta grande parte dos realistas das mais
variadas linhagens. Mas as coisas não são assim tão simples: Hobbes percebeu
que ele distinguia a “miséria” do estado de natureza daquele que prevalece entre
“pessoas de autoridade soberana”. Contrários à necessidade da transcendência da
guerra de todos contra todos, os Estados podem contrabalancear os perigos que se
apresentam quanto à vulnerabilidade dos indivíduos, na medida em que mantém
organizações militares e que fazem alianças externas que provenham, ao menos um
pouco, de segurança. Através do estabelecimento de uma ordem pública, os incen-
tivos para uma “vida cômoda” são então criados, levando à obediência e soberania.
Certos realistas que não foram capturados por certas “suposições” e prin-
cípios de maximização através dos quais o homo politicus detinha o poder maxi-
mizador – como aquele que orientava o homo economicus –, mas que era mais in-
clinado e interessado historicamente no funcionamento atual do sistema de estados
(europeus) em geral, que deram maior atenção às convenções e instituições, tais
como os tratados, títulos e tentativas de regulamentação do uso da força. Hume
já considerara essas normas fundamentais sem estabelecer quaisquer presunções,
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regulado (leis de guerra) juntamente com as provisões para a aquisição de títulos,
pois nenhum sistema social seria capaz de reproduzir a si mesmo. A Escola In-
glesa desenvolveu a partir dessa ideia uma pesquisa de uma sociedade anárquica,
comparando os sistemas históricos dos Estados, os quais acrescentaram novas per-
guntas para incorporação dessas instituições no amplo contato de “civilizações”,
culturas e tradições. Mas a questão é: se essas regras já foram realmente “leis”
ou “somente” parte de uma moral internacional vaga, permanece conceitualmente
problemática. A “lei”, opostamente às outras prescrições, parece fortemente conec-
tada ao estado, tal como o mito fundacional do contrato social, o qual estabelece a
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exercer o dominium.
Ironicamente, a Escola Inglesa reabriu esse debate no ponto em que a
sociedade clássica dos estados já estava pressionada pela transformação dos pro-
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158 VIII ANUÁRIO BRASILEIRO DE DIREITO INTERNACIONAL
cessos de mudança. Temos, então, que Estados, não são substituíveis por outros
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mesmo sendo de escopo universal, não poderia carregar todas as tarefas para a qual
foi projetada, o que nos dá um desagradável vislumbre do que está em jogo no
“bloquear políticas”, uma vez que elas transcendem os Estados. Estes permanecem,
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hobbesiano. Não obstante, Estados não seriam mais os únicos membros do clube
que determinariam as regras do jogo. Mesmo muito antes da revolução dos direitos
humanos e das obrigações erga omnes, a emergência de leis transnacionais trans-
formou a noção clássica do direito internacional em um corpo de regras vinculantes
aos estados, que mantém, porém, pouco contato com a práxis. Um desenvolvimen-
 soft law” estaria mostrando suas garras
não apenas nos casos dos vários acordos condicionais do FMI – antes dos Acordos
de Helsinki –, mas também enquanto davam poder a grupos domésticos de rei-
vindicar seus direitos aos seus governantes. Isso iniciou uma transformação no
sistema internacional na medida em que trazia a eventual morte do bloco soviético.
Isso também explorou a nítida distinção que o soft e o hard law seguiram a partir
da distinção familiar entre suas áreas “funcionais” mais ou menos importantes, as
quais o direito duro ou real regulou questões de altas políticas (high politics) e que
representou a “lei de coexistência”.
Resumindo, a formalidade parece não mais se relacionar adequadamente
com a “obrigação”, como sugere a dicotomia da “lei / não lei” ou a “sanção / não
sanção” kelseniana. Similarmente, “cortes” nas quais deveriam ser aplicadas regras
legais que têm um pedigree e que devem então ser traçadas para suas fontes de
autorização, são sugeridas – como a Corte Internacional de Justiça (CIJ) fez, por
exemplo, na prateleira continental do Mar do Norte; na qual as regras existiam,
embora sua aplicação nem sempre tenha levado a resultados satisfatórios, de forma

Naturalmente, alguém poderia virar ao avesso esses argumentos e mos-
       
direito internacional também não seria mais do que um amontoado de peças em
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de contas, não são todas as normas legais que têm sanções vinculadas a elas como
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Similarmente, a equidade tem sido parte do direito comum já por algum tempo, e
ninguém duvidaria que este fosse um direito genuíno e que suas cortes são “reais”.
Então, nem a “teoria do caráter vinculado” (character tag theory) a la Kelsen, a
qual diz que as regras legais devem ter alguma coisa em comum, nem sua refor-
mulação como parte de um sistema de normas primárias e secundárias, tal como

nada a respeito da dimensão do território marítimo ou do número de dias que um
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