O “Diálogo” das Fontes: Fragmentação e Coerência no Direito Internacional Contemporâneo

AuthorAlberto do Amaral Júnior
PositionProfessor de Direito Internacional da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo
Pages11-33

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Introdução

No limiar do século XXI os efeitos da mundialização causados sobretudo pela revolução nas comunicações estendem-se indistintamente a todos os domínios da vida contemporânea. A cooperação por sua vez, adensou-se em setores tão variados quanto o comércio internacional, os direitos humanos, a exploração dos recursos marinhos e a preservação do meio ambiente. Combinados, estes fatores irão atingir fortemente o direito internacional.

É ainda fato inquestionável que as últimas décadas conheceram extraordinária expansão das normas jurídicas internacionais acompanhada da formação de hierarquiaPage 12normativa no direito internacional graças ao reconhecimento do jus cogens pela Convenção de Viena sobre Direito dos Tratados.

Essa impressionante proliferação normativa entreabriu a probabilidade de conflitos normativos e aprofundou a tendência de fragmentação do direito internacional em múltiplos subsistemas dotados de lógica própria e fins específicos. Esses fatos suscitam a preocupação com a coerência do direito internacional, já que a presença de antinomias é indesejável não apenas por colocarem o intérprete diante de alternativas inconciliáveis, mas também porque impedem a realização da justiça.

Considero, na esteira de Norberto Bobbio, que a coerência não é condição de validade, mas é sempre uma condição para o justo ordenamento. As exigências de certeza (que corresponde ao valor da paz ou da ordem) e justiça (que corresponde ao valor da igualdade) desaparecem se o intérprete puder, indiferentemente, aplicar regras contraditórias. Se duas normas antinômicas coexistirem o ordenamento jurídico não conseguirá garantir nem a certeza, entendida como possibilidade de prever com exatidão as conseqüências de dada conduta, nem a justiça, entendida como igual tratamento entre aqueles que pertencem à mesma categoria.

Na tentativa de formular critérios que contemplem as múltiplas interações normativas, contesto, outrossim, o ponto de vista de que o direito internacional é um conglomerado de subsistemas desvinculados entre si. Proponho, ao contrário, um novo método, intitulado “diálogo” das fontes, sob a inspiração do trabalho pioneiro desenvolvido por Eric Jayme no âmbito do direito internacional privado. Longe de ignorar o ingente trabalho dos juristas para resolver as antinomias, que a doutrina consolidou em princípios comumente aceitos, indico a necessidade de um segundo método, que coexista com as soluções tradicionais. Trata-se de aplicar, simultânea, coerente e coordenadamente, as várias fontes do direito internacional de modo a eliminar a norma incompatível somente quando se verificar que a contradição que ela causa é insuperável. A coordenação flexível das fontes restabelece a coerência ao identificar complementaridades, convergências e harmonias. Nessa tarefa, a presunção contra o conflito, enfatizada por Wilfred Jenks há mais de meio século, cumpre função essencial. O “diálogo” das fontes vislumbra a totalidade das normas internacionais sem esquecer, obviamente, as especificidades que marcam os subsistemas particulares. O que se deseja é perceber o direito internacional como um sistema no qual a busca de unidade não faz desaparecer a singularidade das partes que o constituem, e que ele se sujeita a princípios que organizam os elementos individualmente considerados. Este artigo discute, pois, três questões:

  1. o risco de fragmentação das normas internacionais causado pela existência de variados subsistemas;

  2. a reconstrução da coerência do ordenamento jurídico internacional por intermédio do “diálogo” das fontes; e

  3. o vínculo entre os vários tipos de “diálogo” das fontes e o tema da justiça no direito internacional contemporâneo.

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O Risco de Fragmentação do Direito Internacional

A aceleração da interdependência engendrada pelo advento da mundialização alargou o campo regulatório do direito internacional a domínios que outrora pertenciam exclusivamente às relações diplomáticas. Esse processo, que se iniciou antes mesmo que a globalização se aprofundasse, ganhou vigor diante do imperativo de se buscar solução para os múltiplos problemas propostos pelas interações econômicas, sociais e políticas. Houve, em praticamente todos os setores da vida internacional, a produção de normas obrigatórias, dotadas de precisão, que delegam a um terceiro a tarefa de resolver os conflitos mediante a aplicação de regras jurídicas1.

Normas cada vez mais numerosas são necessárias para regular áreas que vão das telecomunicações à proteção do meio ambiente, da cooperação judiciária à instituição de cortes jurisdicionais, do aproveitamento dos recursos marinhos à proteção dos direitos humanos, do combate ao terrorismo à não proliferação de armas nucleares, do comércio multilateral aos acordos econômicos regionais. As regras de alcance universal convivem com a tendência de diferenciação com base no domínio das normas, na especificidade que possuem e no grau de desenvolvimento dos Estados.

A intensa regulação jurídica das relações internacionais contribuiu para elevar, de forma inusitada, a probabilidade de conflitos normativos. Joost Pauwelyn, ao examinar os fatores responsáveis pela proliferação dos conflitos entre as normas internacionais na atualidade, discrimina ao todo oito fatores, dos quais quatro são inerentes à formação das regras internacionais e quatro decorrem das transformações do direito internacional contemporâneo. No primeiro grupo2 merecem destaque:

  1. A descentralização da produção normativa. Não é de se estranhar que na esfera internacional, marcada pela descentralização do poder, os conflitos normativos sejam até certo ponto naturais em função do crescente número de Estados. Os obstáculos para a obtenção do consenso estimulam a elaboração de normas vagas, passíveis de múltiplas interpretações, conforme a natureza dos interesses em jogo. A probabilidade de consenso diminui à proporção que um grande número de Estados participa das negociações de novos tratados, como sucede na OMC, circunstância que favorece o aparecimento de normas conflitantes no interior do mesmo regime ou entre regimes jurídicos diferentes.

  2. O tempo. O fato de as normas internacionais terem, fundamentalmente, o mesmo valor normativo faz do tempo uma variável de grande relevância. A variedade e diversidade dos interesses estatais tornam o surgimento das normas uma conseqüência natural da passagem do tempo.

  3. O processo de formação das normas internacionais. Afora as particularidades da vida internacional, a realidade interna dos Estados pode encorajar os conflitos normativos.

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No plano nacional, as negociações para a conclusão de tratados internacionais se fazem acompanhar de discussões que reúnem diplomatas, especialistas e representantes dos setores sociais interessados. Esses debates ampliam extraordinariamente o grau de especialização das questões e desenvolvem um estilo específico de abordar os problemas. Organizações não-governamentais, defensoras do livre-comércio ou da preservação do meio ambiente, pressionam para que sejam acolhidos os interesses que defendem.

As pressões avolumam-se, também, quando o parlamento aprecia um tratado já concluído a fim de inseri-lo no ordenamento jurídico doméstico. A disseminação dos grupos organizados, que privilegiam uma visão segmentada da realidade, fomenta os conflitos entre tratados. Este fenômeno contagia o direito internacional costumeiro, que depende da ampla aceitação dos destinatários.

d) A ausência de uma corte com jurisdição geral e compulsória encarregada de zelar pela aplicação das normas internacionais. A carência de um órgão centralizado impede, em muitos casos, a gestão adequada das relações internacionais por intermédio da solução pacifica das controvérsias. A pluralidade de instâncias jurisdicionais cria o risco de que os conflitos venham a ser resolvidos de forma diversa e até mesmo contraditória.

Afora esses fatores, Joost Pauwelyn acrescenta as seguintes causas dos conflitos de normas internacionais3:

  1. ) A passagem das normas de coexistência para as normas de cooperação. Os enfoques tradicionais vinculados à soberania territorial, às relações diplomáticas e aos domínios da guerra e da paz deram lugar à cooperação nas áreas do comércio, meio ambiente e direitos humanos. O vertiginoso aumento do número de tratados multilaterais precipitou não só os conflitos entre normas de diferentes subsistemas, a exemplo do que acontece entre os acordos da OMC e os tratados ambientais, mas também entre as regras de um mesmo subsistema, como se verifica entre as regras da OMC.

  2. ) A globalização. A aceleração da interdependência, efeito imediato do processo de globalização, potencializou a perspectiva de novos conflitos entre tratados internacionais, que obedecem a motivos os mais variados. Acordos de liberalização comercial colidem com normas internacionais instituídas para garantir objetivos de caráter social.

  3. ) A hierarquia de valores. O conceito de jus cogens, previsto pela Convenção de Viena sobre Direito dos Tratados, exprime a convicção de que as normas internacionais não se encontram no mesmo patamar. O reconhecimento de que certas normas são superiores às demais é uma causa potencial de conflitos.

  4. ) A ampliação da solução jurídica das controvérsias. A generalização dos meios jurídicos de solução dos litígios repercute nos conflitos entre as normas de direito internacional. Julgamentos proferidos em determinadas instâncias, como a OMC, tendem a afetar setores que ultrapassam o comércio propriamente dito.

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Outras razões militam, ainda, em prol da intensificação dos conflitos entre tratados. O regionalismo comandou a formação, em todos os continentes, de múltiplos acordos sobre uma gama...

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