Os Desafios da Corte Internacional de Justiça na Atualidade

Author1. Daniela Rodrigues Vieira - 2.Leonardo Nemer Caldeira Brant
Position1. Mestre em Ciências Políticas pela Universidade de Masaryk, República Tcheca. Membro do Centro de Direito Internacional – CEDIN. - 2 Doutor em Direito Internacional pela Universidade de Paris X, França. Presidente do Centro de Direito Internacional – CEDIN. Professor de Direito Internacional da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG )
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O surgimento da Corte Internacional de Justiça (CIJ) responde a uma necessidade normativa e social. ela é o resultado de um longo caminho de institucionalização e de jurisdicionalização dos métodos de aplicação do direito às diferenças internacionais.3Braço judicial da das nações unidas (Onu),4 a Corte assume papel de crescente importância na garantia da manutenção da paz e da segurança internacionais em umPage 114mundo onde virtualmente todos os estados fazem parte do sistema Onu.5 Por con-seguinte, o desenvolvimento de suas atividades enseja a modificação de seu papel e a consolidação de novos dilemas em torno deste órgão.

A instância judicial da Organização das nações unidas tem sua competência estabelecida por meio contencioso ou consultivo. em matéria contenciosa, enquanto um tribunal baseado no direito internacional, naturalmente se conclui que os su-jeitos competentes para demandá-lo são os estados.6 Ainda assim, organizações internacionais podem, evidentemente, colaborar com a Corte, notadamente respon-dendo ou dirigindo por iniciativa própria, informações que poderiam auxiliar na apreciação de um caso contencioso. esta colaboração não significa, contudo, a liber-dade de acesso.7

Conforme o artigo 35, §1º, do estatuto, a jurisdição contenciosa da Corte está aberta a qualquer estado parte do estatuto da CIJ e que tenha reconhecido sua com-petência.8 Cabe lembrar que a jurisdição contenciosa no que diz respeito à dimensão ratione personae deste órgão recai fundamentalmente sobre o consentimento anterior das partes. Dessa forma, quatro são os caminhos pelo quais os entes estatais podem proceder a tal aceitação. O primeiro deles é através de um acordo especial para subme-ter uma disputa à CIJ. este consentimento pode ser dado anteriormente em cada caso. uma segunda possibilidade é por meio do polêmico conceito de forum prorogatum, no qual se vislumbra a legitimidade de um consentimento tácito.9 A existência de uma cláusula jurisdicional estabelecendo a competência deste tribunal dentro de um trat-ado é, igualmente, uma maneira de o estado promover seu consentimento. este tipo de situação, em geral, diz respeito à solução de controvérsias quanto à interpretação e aplicação do documento celebrado. uma quarta via seria o encaminhamento à CIJ quando as partes houverem firmado cláusula facultativa de jurisdição obrigatória,10 a qual tem o poder de vincular seus signatários a submeterem suas disputas em situações por eles mencionadas neste dispositivo. Por fim, o Artigo 36 (6) do estatuto determina a chamada “competência da competência”, a partir da qual a própria CortePage 115deve proceder ao juízo de admissibilidade sobre sua capacidade de jurisdição em uma dada disputa.

Em relação ao alcance de sua competência ratione materiae, a CIJ pode discutir qualquer caso a ela encaminhado, desde que se considere competente para fazê-lo.11Contudo, o apelo à Corte não é subsidiário ao esgotamento dos mecanismos políticos de solução de controvérsias.12 na realidade, uma vez respeitada a necessidade formal do consentimento, nada impede os estados, se eles assim o desejarem, de optar primei-ramente pelo recurso à Corte na solução de suas controvérsias. Portanto, a disposição prevista no Artigo 33 da Carta da Onu não traduz necessariamente uma obrigação hierárquica, mas uma simples descrição dos instrumentos à disposição dos estados.13

Um procedimento contencioso típico segue o rito com 15 juízes14. no entanto, a CIJ nem sempre julga via plenário, existindo três possibilidades de formação de câmara.15 seu estatuto estipula que anualmente sejam designados cinco juizes, in-cluindo seu Presidente e Vice-Presidente, para formar uma Câmara de Procedimento sumário, com a finalidade de acelerar a expedição das formalidades. Podem, ainda, serem constituídas câmaras de no mínimo três juízes para lidar com uma certa cat-egoria de casos,16 ou se constituir uma Câmara ad hoc, que funciona semelhante a um tribunal arbitral lidando com uma dada disputa após consultar as partes sobre os juízes que a comporão.17 este rito é, então, composto por duas fases, sendo a primeira o debate das questões preliminares, o qual, em geral, repousa sobre o juízo de admis-sibilidade do caso, e a segunda uma discussão de mérito, incluindo uma parte escrita e uma oral.18 As preliminares devem ser sanadas em um período máximo de três meses. As fontes usadas estão delimitadas pelo artigo 38 do estatuto e são compostas por convenções internacionais, costumes e princípios gerais do direito internacional. subsidiariamente, a Corte pode julgar segundo regras de direito e segundo a equidade e a boa fé (ex aequo et bono), se assim o for permitido pelas partes.

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Uma sentença contenciosa da Corte Internacional de Justiça é marcada pela obrigatoriedade de seu conteúdo e pela impossibilidade jurídica de recolocar em questão os pontos sobre os quais o tribunal já estatuiu a título definitivo e irrevogável.19 É claro que a obriga-toriedade de uma sentença da CIJ poderá ser oposta unicamente às partes presentes na instância. esta é, ao que tudo indica, a natureza do artigo 59 do estatuto e o fundamento do provérbio res inter alios neque nocet prodest, que estabelece que, na medida em que um estado não é considerado como parte litigante, a decisão jurisdicional será para ele considerada como uma res inter alios acta, ou seja, sem nenhuma existência jurídica.20

A Corte Internacional de Justiça tem, igualmente, competência consultiva para de-liberar.21 O exercício desta atividade é delimitado em virtude da natureza dos casos a ela submetidos e se estende a toda “questão jurídica”, o que deve ser entendido, na realidade, como toda questão “de direito internacional”. mas, ao lado desta “competên-cia material explícita” e objetiva, a Corte acabou por reconhecer algumas “competên-cias materiais extraordinárias”,22 advindas de certos instrumentos internacionais e de sua atividade discricionária. Por seu turno, a competência consultiva ratione personae desde órgão estabelece que não só a Assembléia geral e o Conselho de segurança po-dem solicitar diretamente um parecer consultivo, como também o podem “outros órgãos das nações unidas e entidades especializadas”, desde que autorizados pela Assembléia geral e desde que a “questão jurídica” recaia sobre sua esfera de atividades.23

Os dispositivos processuais são bastante simples24 e se caracterizam por uma fase inicial, em que a Corte, a partir de um primeiro exame da demanda, exerce seu poder de decidir sobre a admissibilidade do pedido. A essa primeira fase, seguem-se a apre-ciação e a deliberação das alegações das partes. Por fim, há a elaboração do parecer consultivo em si.25 Quanto ao seu caráter jurídico, os pareceres são originalmente desprovidos de natureza vinculante. tratam-se, na realidade, de uma constatação do direito internacional aplicável ao caso, desprovido de qualquer autoridade de coisa julgada (res judicata) ou força obrigatória.26 esta característica não-vinculante em si mesma, apesar de não expressa em nenhum dispositivo tal como a Carta ou o estatuto, tem sido afirmada de maneira pacífica pela doutrina e pela jurisprudência da Corte.27

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Em linhas gerais, os institutos acima tratados delineiam brevemente o papel da Corte Internacional de Justiça no sistema internacional de solução de controvér-sias. A partir destes, algumas interessantes questões ressaltam as atuais perspec-tivas desta instituição.

A Corte Internacional de Justiça: Perspectivas Atuais

As atividades da Corte Internacional de Justiça vêm sendo objeto de profundas transformações que tratam desde aspectos processuais elementares até o redirecio-namento de sua jurisprudência. tais mudanças possuem íntima conexão com o cres-cente aumento de demandas encaminhadas à Corte. em seus 62 anos de existência, foram julgados aproximadamente 100 casos, um terço dos quais foram apreciados na última década. Como afirmado pela Presidente da CIJ, Juíza Rosalyn Higgins,28 em discurso para os estados membros das nações unidas,29 o ano de 2008 foi o mais intenso em atividades judiciais de toda a história da instituição.30 De fato, atualmente, 192 estados fazem parte de seu estatuto, sendo que 66 aceitam sua jurisdição como compulsória segundo disposto no Artigo 36 (2) deste documento. Cento e vinte oito tratados multilaterais e 166 bilaterais mencionam a Corte como o órgão ao qual dis-putas a cerca do acordo devem ser referidas.

Por outro lado, a maior instituição de demandas na Corte não significou a continui-dade do congestionamento de casos existente antes de 2005 e o irracional amplo lapso temporal aguardado pelos estados para serem convocados a apresentar suas sustentações orais após o depósito dos argumentos escritos. tal problema foi devidamente solucionado, sendo que o número de casos na lista de espera não voltou a atingir o nível crítico de vinte e uma demandas ocorrido em 2004.31 este sucesso foi garantido pelo novo enfoque metodológico da Corte, aliando a antiga tática colegial na qual to-dos os juízes opinam sobre um dado caso com a primazia da pontualidade e a análise simultânea de mais de uma demanda.

Para sustentar um aparato cuja demanda indubitavelmente é crescente, algumas reformas operacionais fazem-se necessárias. Desde 2006, a Corte requer que a As-sembléia geral libere a criação de nove novos postos para conselheiros jurídicos, de modo que cada juiz pudesse ter seu próprio conselheiro, assim creditando mais eficiência e rapidez aos trabalhos da CIJ. Contudo, somente foi liberada, em 2008, a criação de três novas vagas para esta função, a qual vem sendo muito bem aproveitada em tribunais similares, como em cortes nacionais superiores e em outros tribunais in-Page 118ternacionais. este pedido da CIJ à Assembléia foi reiterado, e se espera uma resposta positiva no ano orçamentário de 2010-2011.32

O orçamento da...

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