Profissionalizacáo da Função pública: a experiencia Brasileira

AuthorRomeu Felipe Bacellar Filho
ProfessionDoutor em Direito do Estado. Professor da UFPr e da PUC/Pr. Advogado
Pages91-102

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I Profissionalização da função pública e legitimação da administrado pública

No Direito brasileiro, a profissionalização da função pública encontra-se intimamente ligada aos postulados constitucionais. Neste ensaio, o tema será tratado utilizando-se como referencial a Administracáo Pública, aparelhamento do Estado que se encontra voltado, por excelencia, a satisfacáo cotidiana das necessidades coletivas1, mas nao tem legitimidade democrática direta, no máximo, em situacóes excepcionais, legitimidade apenas indireta2.

O art. 1.° da Constituicáo patria estabelece que a «A República Federativa do Brasil, formada pela unido indissolúvel dos Estados e Municipios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos a soberanía; a cidadania, a dignidade da pessoa humana; os valores sociais do trabalho e da Hvre

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iniciativa; o pluralismo político». Se a cidadania e a dignidade da pessoa humana constituem fundamentos do Estado, o interesse perseguido com o exercício da funcáo administrativa debe encontrar seu principio e fim no interesse dos próprios cidadáos, tanto numa perspectiva individual, quanto coletiva.

Na Italia, Andrea PUBUSA sustenta que, diante do principio democrático e da soberania popular, inexistem interesses do Estado ou dos seus aparatos que nao sejam instrumentáis em relacáo a comunidade nem, enfim, decisóes despidas de elementos de democraticidade. «O funcionario nao serve o governo e comanda os cidadáos, mas serve exclusivamente os cidadáos»3. A Administracáo nao cuida de interesses do Estado, mas de interesses dos cidadáos4.

O contexto espanhol nao é diverso. Luciano PAREJO ALFONSO lembra que a condicáo democrática do Estado enquanto Estado de Direito constitui a própria base da Administracáo Pública. Bem por isso é exigida da organizacáo e funcionamento do Estado em seu conjunto a legitimacáo de todas as suas estruturas, e portanto, de todo exercício de poder mediante sua reconducáo direta ou indireta ao povo5. Sobre

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estas bases, a Administracáo Pública aparece como «poder estatal, igual ao Estado e ao mesmo tempo, organizacáo (sujeito), funcáo (atua9áo ou atividade) e ordenamento (dotado de urna economia e lógica próprias no seio do ordenamento geral do Estado»6.

A Administracáo Pública legitima-se quando age em conformidade com o interesse público. Neste contexto, a profissionalização da função pública constitui instrumento de legitimacáo da Administração Pública brasileira perante o povo: (i) primeiro, para garantir a observancia do principio da igualdade na escolha de seus agentes, a partir de criterios que possibilitem a afericáo daqueles mais preparados para o exercício da profissáo, e nao num status atribuido em razáo de um direito de nascenca ou pela proximidade pessoal com os governantes; (ii) segundo, para dar cumprimento ao principio da eficiencia, de urna Administracáo capacitada a responder aos anseios coletivos mediante a prestação de servigos adequados.

II Constituição de 1988, administrado publica e princípio da impessoalidade

A Constituicáo de 1988 inaugurou um capítulo dedicado á Administracáo Pública. Se urna das pedras de toque do Estado de Direito é a fixacáo de um regime jurídico administrativo7, a Lei Fundamental optou por consagrar um regime jurídico constitucional-administrativo, fundado em principios constitucionais expressos: legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiencia (art. 37, caput)8.

A disciplina constitucional administrativa traz, entáo, novos arsenais jurídicos para alteracáo do quadro tradicional de urna Administracáo Pública marcada pela pouca atenção dispensada aos direitos e garantías integrantes do patrimonio do cidadáo-administrado. Afeicoado a visáo da legalidade a qualquer custo, com desconsideracáo a outros valores (como, por exemplo, o contido no principio da confianga), o Administrador atuou, por muito tempo, coberto pela manto da incontestabilidade do interesse público.

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É verdade que nao se trata de inovacáo propriamente dita, mas de recepcáo dos reclames da doutrina que construiu, desde cedo, vias alternativas para elidir a aplicação mecánica da legalidade. Implementou-se, assim, o principio da finalidade pública segundo o qual, na estipulacáo pela lei, de competencias ao Administrador Público, tem-se em foco um determinado bem jurídico que deva ser suprido. Na apreciacáo da legalidade de um ato administrativo, é imperioso o exame da observancia do escopo legal originario. Caio TÁCITO e Rui

CIRNE LIMA desenvolveram importante contribuicáo ao estudo da finalidade pública como parámetro para avaliacáo da legalidade9.

A finalidade pública está compreendida no principio da impessoalidade administrativa. Sua observancia pela Administracáo previne o ato praticado de qualquer sentido de individualismo, posicionando-o em conformidade com o bem comum. Se o bem comum nao se con-funde com a soma dos interesses individuáis, deles também nao prescinde. O Estado constitui um meio para que os individuos e as corporacóes nele inseridas possam atingir seus respectivos fins particulares. O sentido do bem comum é informado pelas necessidades de cada um e da comunidade.

A expressáo poder, estigmatizada durante o período ditatorial brasileiro, encontra-se melhor entendida como prerrogativa. Caso o Administrador Público utilize seu poder além dos limites que a lei lhe confere ou pratique desvio da finalidade pública, há abuso de poder na modalidade do excesso ou do desvio da finalidade. Se todo exercício de poder implica dose de sujeicáo, de coercáo exercida pelo seu detentor sobre os destinatarios, o poder nao se auto-realiza, configura instrumento de trabalho adequado á realizacáo das tarefas administrativas mediante o atendimento das aspiracóes coletivas10.

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O § 1.°, do art. 37, da Constitui9áo Federal, ao tratar da publicidade dos atos, programas, obras, servicos e campanhas dos órçãos públicos, preceitua que esta de verá ter caráter educativo, informativo ou de orientacáo social, déla nao podendo constar nomes, símbolos ou imagens que caracterizem promocáo pessoal de autoridades ou servidores públicos. O mandamento (coerente com o principio da impessoalidade) é claro e direto: o exercício de mandato, cargo, emprego ou funcáo pública configura atividade de natureza impessoal, nao sendo lícito transformá-lo em veículo para o alcance de propaganda ou promoção pessoal11. O administrador que transgrida este preceito convulsiona, desarmoniza e desacredita a acáo administrativa.

A Administracáo Pública, como visto, tem por funcáo precipua gerir a res publica, a coisa pública. Já se disse, com inteira razáo, que a administracáo da coisa pública, até pela especialidade de sua atuacáo, é radicalmente diversa da administracáo da coisa privada. A razáo é obvia: o administrador privado, com a voluntariedade e liberdade próprias de quem é dono, age em consonancia com o interesse particular. Dispóe dos bens e interesses, colimando um objetivo próprio, pessoal. Ao reverso, porque o administrador público encarrega-se de bens pertencentes a coletividade como um todo, os interesses em jogo sao marcados pela indisponibilidade. Afinal, a ninguém é lícito ser despreendido com o que nao lhe pertence.

O principio da impessoalidade implica, para a Administracáo Pública, o de ver de agir segundo regras objetivas e controláveis racionalmente. Desta forma...

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