A Comissão e a Corte Africana dos Direitos Humanos e dos Povos

Author1. Luciana Diniz Duráes Pereira - 2. Marinana Andrade e Barros
Position1. Especialista em Direito Internacional pelas Faculdades Milton Campos - Membro do Centro de Direito Internacional - 2.Membro do Centro de Direito Internacional — Cedin.
Pages152-165

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1. O Sistema Africano de Proteção dos Direitos Humanos e dos Povos

Sem embargo das garantias e direitos assegurados pelo ordenamento jurídico universal de proteção dos direitos humanos1, o sistema africano situa-se, à semelhança dos sistemas regionais europeu2 e interamericano3, como pólo de fundamental relevância na luta pela construção, promoção e efetivação de standards mínimos de proteção à dignidade, às liberdades e ao bem-estar humano na África.

A origem deste sistema encontra-se nos debates ocorridos no seio da XVI sessão ordinária da Assembleia de Chefes de Estado e Governo da antiga Organização da Unidade Africana4. Ao fim dos trabalhos, era julho de 1979, a Assembléia requisitou ao Secretário-Geral o início formal das atividades de elaboração de um projeto para uma futura Carta Africana sobre Direitos Humanos e dos Povos5. Neste sentido, em junho de 19816/, o projeto da Carta Africana foi votado, aprovado e assinado pelos membros da organização. Cinco anos mais tarde, em 21 de outubro de 1986, após atingir o número mínimo de ratificações necessárias, a Carta entrou em vigência.

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Conhecida também como Carta de Banjul, a Carta Africana de Direitos Humanos e dos Povos procura espelhar e preservar contornos característicos da cultura e da formação histórica africana. Pode-se, neste sentido, destacar três principais aspectos: a consagração dos valores tribais como corolário do espírito da Carta7; a disposição singular não só de direitos, mas também de deveres dos indivíduos africanos para corn seus grupos familiares8 e, finalmente, a afirmação conceituai dos direitos dos povos como direitos humanos9, em especial aqueles concernentes ao direito à independência, à autodeterminação e à autonomia dos Estados africanos.

A Carta inaugura, ainda, um marcante avanço legislativo no tocante ao tratamento normativo dos direitos humanos. De forma inédita, elenca, conjuntamente no rol dos direitos protegidos, tanto os direitos civis e políticos como também os direitos económicos, sociais e culturais. Opta claramente, portanto, "por uma visão necessariamente integral ou holístca dos direitos humanos, tomados todos em seu cortjunto, seguindo com fidelidade o legado da Declaração Universal de 1948"10

2. As Instituições Africanas de controle e proteçâodos Direitos Humanos e dos Povos
2. 1 A Comissão Africana dos Direitos Humanos e dos Povos

Na tentativa de melhor resguardar a proteção destes direitos no continente, a Carta estabeleceu, através do disposto em seu artigo 3011, a Comissão Africana dos Direitos Humanos e dos Povos. Não obstante ser esta um órgão destituído de caráter jurisdicional, visto a natureza não-obrigatória de suas decisões12, a Comissão Africana apresenta-se, até a atualidade, como um órgão de marcada importância na estrutura da União Africana.

Composta por onze membros eleitos pela Assembléia de Chefes de Estado ePage 154Governo da UA13 para um mandato de seis anos cada um, a Comissão realiza seus trabalhos através da ocorrência de, pelo menos, duas sessões ordinárias anuais -cada qual com duração de aproximadamente duas semanas14, Estas, assim como eventuais sessões extraordinárias15, acontecem normalmente na sede da Comissão em Banjul, Gâmbia, e são chefiadas pelo seu Presidente em exercício. Entretanto, a pedido de seus membros e mediante anuência prévia do Secretário administrativo da Comissão, as reuniões podem se dar em locais outros que não em sua sede16.

Na execução dos trabalhos, a Comissão é autónoma para optar por realizá-los em sessões abertas ao público ou às portas fechadas - in cantem. Destaca-se, porém que, independentemente do modo de condução dos mesmos e, em especial, devido ao crescente intuito de se valorizar a participação da sociedade civil na resolução de conflitos, a Comissão pode convidar, se julgar necessário para a melhor discussão dos temas e casos que compõem sua agenda, Estados, Movimentos de Libertação Nacional, Organizações Não-Governamentais e entidades especializadas para, com o staíus de observadoras, terem assento em suas sessões.

De acordo com a Carta Africana17, a Comissão exerce diversificadas funções de órgão de supervisão, A análise do histórico de suas decisões18 demonstra que sua principal esfera de atuação se dá no campo da promoção dos direitos humanos. Nesta atividade, a competência da Comissão limita-se basicamente às seguintes tarefas: examinar os relatórios periódicos apresentados pelos Estados; e investigar, debater e elaborar relatórios conclusivos frente a denúncias de violações aos direitos humanos salvaguardados peia Carta, Ainda,Page 155pode a Comissão promover, no âmbito desta atribuição, estudos, seminários, congressos e convénios com outras instituições africanas ou internacionais que objetivem colocar em evidência a necessidade de se proteger tais garantias na África. O resultado deste trabalho, por sua vez, pode ser encaminhado, a titulo de recomendação e sugestão, tanto aos Estados como à Assembléia da UA para que as cabíveis providências sejam tomadas.

Outra importante competência exercida pela Comissão é a competência interpretativa. A Carta de Banjul dispõe, em seu artigo 45, III, que compete a este órgão a responsabilidade de efetuar eventuais interpretações teóricas a respeito de seus dispositivos. Poderá a Comissão fazê-lo, então, mediante pedido de qualquer um dos Estados-parte da União Africana, de seus órgãos e, até mesmo, de outras organizações africanas que sejam reconhecidas pela UA. Ê válido destacar que esta função interpretativa, no cenário internacional, normalmente é de responsabilidade de órgãos jurisdicionais19, o que não é o caso da Comíssão.

Logo, na intenção de aperfeiçoar e fortalecer a estrutura e os mecanismos de proteção do sistema africano - cuja ausência de um órgão verdadeiramente jurisdicional sentiu-se necessária ao longo dos anos de atuação da Comissão -em junho 1994, na 30a sessão da Assembléia de Chefes de Estado e Governo da Organização da Unidade Africana realizada em Túnis, na Tunísia, foi adotada a resolução AHG/230. Esta foi o efetivo marco inaugural do projeto de formação de uma Corte Africana dos Direitos Humanos e dos Povos, na medida em que deu início aos trabalhos da Comissão e dos "peritos governamentais"20 na elaboração de um Protocolo Adicional à Carta de Banjul que versasse sobre a inclusão de uma Corte no quadro institucional da OUA,

2. 2 O Protocolo Adicional à Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos

O Protocolo Adicional foi, então, aprovado e adotado pela Assembleia e pelo Secretário-Geral da organização em junho de 1998. Em dezembro de 2003, trinta dias após atingir a 15º ratificação necessária21, o Protocolo entrou em vigor. Destaca-se a intenção do documento em deixar claro, em seu artigo 2°, que o trabalho da Corte deverá servir de complemento ao mandato da Comissão Africana, demonstrando que estes dois órgãos deverão trabalhar juntos na tarefa de proteção e garantia dos direitos humanos no continente. Como a Corte ainda está em processo de institucionalização22, somente com a prática e com o cotidianoPage 156de seus trabalhos é que se poderá saber como será realizada a harmonização entre suas atividades e as da Comissão.

2.2. 1 A Corte Africana de Direitos Humanos e dos Povos
2.2. 1,1 Composição

De acordo com o artigo 11 do Protocolo Adicional à Carta de Banjul, a Corte Africana deverá ser composta por onze juizes; Para a indicação e respectivo exercício do cargo ê necessário que estes sejam nacionais dos Estados que compõe a União Africana. Além desta exigência, os juizes deverão possuir conduta ilibada e satisfazer os critérios de alta qualificação jurídica, académica ou prática no campo dos direitos humanos.

A eleição23 dar-se-á a partir de uma lista de candidatos24 apresentada pelos países signatários do Protocolo, respeitando o limite de, no máximo, três candidatos indicados por país25. Com a listagem em mãos, a Assembleia de Chefes de Estado e de Governo da União Africana elegerá, em votação secreta26, os componentes da Corte. Estes serão eleitos para um mandato de seís anos, cabendo a reeleição por uma única vez e para mandato de igual período. Para a devida condução dos julgamentos e dos trabalhos deste órgão jurisdícional, deverá ser realizada, após a institucionalização da Corte, a escolha de seu Presidente, assim como a de seu Vice-Presidente. Ambos deverão ser eleitos pelos membros da própria Corte, para um mandato de dois anos, sendo possível, também, a reeleição por uma única vez27. As funções e competências de tais cargos deverão ser determinadas pelas Ruks of Procedure a serem adotadas no seio da própria Corte28

No exercício de seus ofícios, aos juizes da Corte Africana será exigido desempenho profissional embasado nas premissas da boa-fé e da imparcialidade29. Para tanto, a eles é garantida a independência de atuação, bem como as imunidades reconhecidas pelo Direito Internacional aos agentes diplomáticos30.

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2.2.1. 2 Competência

De acordo com os artigos 3 e 4 do Protocolo Adicional ã Carta Africana, a Corte possui, na análise de denúncias e casos de violação aos direitos humanos na África, competência...

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